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Dizem que quando se está constipado, não se deve voar. Mas se o nosso trabalho depender de voar, o que fazer? Aguentar as dores lancinantes de ouvidos que, impedidos de funcionar normalmente, não sabem o que fazer para aliviar a pressão e nos vão assim castigando, com alfinetadas curtas, mas repetitivas, que se vão agudizando até chegarmos ao solo. Falhar é que não. Nunca. Ainda nunca.
Por pior que tenha estado, consegui nunca falhar. Contra conselhos médicos e contra o meu próprio corpo. Mas o que fazer quando a cabeça, se não cumprir os seus deveres, fica mais doente do que o corpo? É verdade que, em dias de concerto, ainda só padeci de doenças que não me impediam de cantar. Cantar constipada é impeditivo de cantar como se gosta, de forma livre e sem se estar preocupado em saber se as notas estão todas lá, prontinhas para sair. Mas, mais constrangida ou menos constrangida, a voz lá sai.
Claro que o conselho médico é sempre no sentido de nos protegermos a nós e não ao público. Porque o nosso instrumento musical é único e finito e porque cantar doente poderá provocar danos irreparáveis. Só que, ao irmos para palco mesmo doentes, não é só o público que estamos a proteger. Obviamente que entre dar tudo aquilo a que as pessoas têm direito e apenas dar uma parte, porque não conseguimos fisicamente dar mais, preferiria a primeira hipótese. Não a escolho apenas por vaidade ou orgulho (se estamos pior num dia, o público nunca o saberá e ficará para sempre com a ideia formada acerca do que valemos por aquilo que ouviu num momento de maior fragilidade), mas, sobretudo, porque se alguém se deu ao trabalho de nos ir ver, queremos dar a essa pessoa tudo aquilo que temos.
Infelizmente, nem sempre tudo aquilo que temos é o nosso todo. Assim sendo, defraudará mais as expectativas cancelar ou não estar a cem por cento? É esta a questão que todo o artista se coloca quando se debate com alguma maleita que não seja tão grande que o impeça de cumprir os deveres profissionais, mas que é suficiente para o impedir de estar na sua plenitude. Acredito que entregar apenas uma parte de mim poderá ser mais satisfatório do que declarar–me derrotada à partida, cancelando o nosso encontro. Não entregando nada. Por isso vou. Estou lá. Ainda não faltei.
A superação das dificuldades pode mesmo ser uma mais-valia para um espectáculo. A entrega emocional que se coloca para compensar a menor capacidade instrumental, a concentração mais afinada do que nunca para não se falhar momentos cruciais, as formas de fugir à doença que encontramos entre a adrenalina do momento e que nos podem mostrar novos caminhos na música e na interpretação. Sobretudo, a força que nos parecia faltar, entre febres e espirros, aparece-nos não sabemos bem de onde. É uma força tão avassaladora que dura o concerto inteiro e mais um bocadinho.
Às vezes dura apenas isso. Depois, ficamos caídos, combalidos. Mas outras vezes, parece que nos espanta a doença e nos põe melhores. Não sei explicar bem. Nem quero. O mecanismo de funcionamento do corpo e da mente quando se está no palco desafia qualquer lógica ou conhecimento científico.
A única coisa que sei é que depois do voo de quatro horas fiquei dois dias sem ouvir bem, cheia de medo de não recuperar a tempo. Preciso tanto dos ouvidos como da voz para trabalhar. Se não os tiver, não afino, não entro a tempo, não consigo destrinçar os instrumentos e as dinâmicas. Mesmo a tempo de entrar em palco, o ouvido lá se resgatou e resolveu aceitar a pressão do ar que eu respirava.
Dos concertos em Cabo Verde e Toronto falaremos nos próximos capítulos.
Ana Bacalhau escreve de acordo com a antiga ortografia.
Publicado originalmente na edição de 15 de junho de 2014.