Dividir para conquistar

Notícias Magazine

No outro dia, ao tentar visitar o renovado Museu de Arte Popular, vim a saber que o seu espólio está guardado bem longe dali e bem longe dos olhares do público já há alguns anos. Inqui­rindo acerca de quando se previa que a colecção estivesse dispo­nível para visita, um longo suspiro e o previsível «não temos in­formação acerca desse assunto». A única certeza parecia ser que não seria para breve.

Achei muitas coisas. Mas, sobretudo, achei irónico que um museu que foi criado sob a alçada de uma ideologia que proi­bia os ajuntamentos nas ruas, mas que pretendia congregar as ma­nifestações populares em locais próprios e controlados por si, es­teja a sofrer de algo muito diferente, mas que é parecido: a aniqui­lação de movimentos e manifestações populares livres e não controlados. Olhando para a forma como se conduz a «coisa pú­blica» aqui e noutros países, a displicência com que a cultura e o espaço popular têm vindo a ser tratados parece demasiado coin­cidente para ser coincidência.

Começando pela educação. O desinvestimento na noção e na realidade que é a escola pública leva a que se tenha vin­do a destruir a ideia de que aquele pode e deve ser um espaço de construção de igualdade de oportunidades, de livre pensamento, de formação cívica enquanto espaço primeiro de congregação e manifestação popular. Se as nossas crianças vivem uma escola que não é livre, igualitária e vivida em comunidade, crescerão a tomar como normal que vivam num mundo que não é livre, não oferece igualdade de oportunidades e que não sabe viver em comunidade.

Depois, a cultura e as artes. Não havendo possibi­lidade de se viabilizar bilheteiras que possam ser sustentáveis, porque uma boa parte do público que antes acorria aos eventos culturais pagando bilhete, não tem agora possibilidade de o fazer, deixa-se a subsistência da maior parte das produções culturais e artísticas sujeita aos critérios do poder político e económico (atra­vés de subsídios ou de patronos), que muitas vezes tem como inte­resse primeiro e último não o valor artístico do objecto mas sim o valor económico – se dá lucro, ou não, se é para as massas, ou não. Com o espaço reservado à cultura cada vez mais reduzido nos meios de comunicação, vai-se tornando mais difícil produzir cul­tura de forma livre e não controlada que possa ser sustentável e chegar até às pessoas. Um público que não tem liberdade de op­ção, será um público com uma voz cultural diminuída e com pou­cas manifestações culturais congregadoras que sejam livres e espontâneas.

A juntar a isto, a destruição de outros espaços e conquis­tas populares, como o acesso universal e tendencialmente gratui­to à saúde ou a tentativa de descredibilização e consequente per­da de força das uniões de trabalhadores.

O espaço público esvazia-se, os ajuntamentos popula­res deixam de acontecer e, quando acontecem, são controlados. A filosofia do «cada um por si» parece ganhar terreno, nas institui­ções e mentalidades. «Só me junto se ganhar algo com isso», ou «Não vale a pena juntarmo-nos, porque não serve de nada», são os argumentos que muitos utilizam perante si e perante os outros pa­ra justificar o seu abandono do espaço público e do sentido comu­nitário. E que jeito dá a alguns poucos que muitos acabem por pen­sar assim. Este é o maior perigo que enfrentamos hoje, o de nos dei­xarmos convencer de que estamos melhor se estivermos entregues a nós próprios, a construir algo que seja apenas do nosso interes­se, do que a trabalhar juntamente com outros, para construir al­go que interesse a nós e aos outros.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA

[26-01-2014]