
Gosto de me sentir confortável, mas preciso de me sentir inquieta. A contradição persegue-me desde que me lembro: o desejo de me sentir segura e a vontade de experimentar as possibilidades que a vida oferece convivem em permanente atrito e irresolução. Um dia anseio pela estabilidade e pela sensação de segurança que esta nos dá e, no outro, sinto borboletas no estômago e preciso de me lançar, de ir, sem pensar nas consequências.
Sou assim e não sei por que sou assim. Não tenho muita curiosidade em perceber. Quer dizer, eu gosto de me conhecer bem, mas acho que há coisas que deverão permanecer instintivas. Não procuro racionalizar ou intelectualizar tudo aquilo que faço ou sinto.
Sinto-me feliz quando estou confortável, sinto-me viva quando me dou à inquietação. Acho que é isso que define o conforto e o desconforto. A acção e o seu contrário. Quando nos sentimos confortáveis, não nos mexemos. Ficamos no mesmo sítio, a desfrutar. Quanto estamos desconfortáveis, mudamos de sítio, avançamos em direcção a algum lugar onde talvez nos possamos sentir mais confortáveis, sabendo que há a probabilidade de nos perdermos e acabarmos por nos colocar num lugar ainda mais desconfortável. Há uma terceira e mais arrevesada possibilidade: a de nos sentirmos confortáveis durante tanto tempo que nos começamos a sentir desconfortáveis. Não porque rejeitamos o conforto ou o lugar que nos faz felizes, mas porque precisamos de sentir que avançamos, que não estagnámos. Que ainda não é tempo de pararmos definitivamente.
Talvez seja músico porque sou assim. Acho que qualquer pessoa que trabalhe dentro do território da arte terá de ter esta característica, esta necessidade de perseguir a inquietação, o desconforto. Só na busca e no caminho podemos ir avançando na nossa arte e na nossa expressão. Há uma permanente insatisfação com a obra feita que provavelmente advirá da nossa intuição em relação à obra que podemos executar no futuro e que será sempre, ambicionamos nós, melhor, mais completa, mais rica, mais nossa.
Até chegar à Deolinda, houve um percurso rico em ensinamentos e experiência. Com a Deolinda, percebi qual era a minha voz e de que forma posso expressar-me em palco. Aprendi a contar histórias de outros e a dar-lhes credibilidade. A Deolinda é a minha casa, o meu conforto. A minha felicidade. Aí, eu sei quem sou, qual o meu papel, mesmo com toda a liberdade criativa que deriva das composições do Pedro da Silva Martins e dos arranjos da banda. Há um tom, uma forma de estar e um universo que já está firmado e que nos é muito claro. Defendemo-lo acerrimamente.
Talvez por isso, agora que está criado o meu nicho de conforto, senti a inquietação de sair do quentinho do lar e de me lançar ao vento. Vou fazer um concerto em nome próprio. Nunca o fiz. Sempre estive em bandas e gosto do sentido de partilha e de comunhão que existe num grupo de pessoas unidas em torno da mesma missão. Mas, agora, senti que era preciso arriscar. Sair temporariamente da minha casa para procurar saber quem sou, quando estou em território desconhecido. É um desvio temporário, claro.
São concertos em que irei visitar canções e músicos que me influenciaram e que tiveram importância no meu caminho. É a busca daquilo que posso ser para além daquilo que já sou, assente em tudo o que me foi ensinado. Gostaria muito que fosse um passo em direcção a um conforto maior, o acrescentar de mais uma divisão à casa onde sou feliz. Porque acho que é daí que vem esta inquietação que sinto. De uma procura incessante por um conforto e uma felicidade cada vez maiores e mais plenos.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[24-11-2013]