Cidades inteligentes precisam-se

Engenheiro mecânico, MBA pela London Business School, Filipe Vasconcelos é administrador da YAP – ON, uma empresa de consultadoria nas áreas de energia, ambiente e recursos. Antes, tinha sido presidente da Agência Portuguesa de Energia. Trabalhou com o secretário de Estado da Energia, foi consultor na EDP, desenvolveu projetos de política energética por todos os sítios onde passou. Tem 37 anos.

Analisando os consumos energéticos e de água, medindo o número de resíduos e observando a mobilidade das populações, é possível criar uma gestão urbana com desperdício zero. É nisso que acredita Filipe Vasconcelos, engenheiro e consultor. E explica porque é que todos podemos ganhar com a sustentabilidade das cidades.

A ideia de uma cidade como Lisboa ser totalmente sustentável em termos energéticos é viável?
Claro que é. O que temos visto até hoje são pequenos exemplos que olham apenas para um dos vetores. Projetos-piloto em termos de energia ou de gestão da água. É muito mais interessante pensar nos diversos vetores e concertá-los. É preciso pensar nas cidades – e quem fala em cidades também fala em organizações – como sistemas dinâmicos, modulares, que integram todos estes vetores, e que se adaptam aos nossos hábitos de consumo.

Pode dar um exemplo?
O edifício onde trabalho. O sistema de ar condicionado pode ser impactado pela previsão meteorológica de amanhã. Se amanhã vai chover e fazer frio, eu posso desligar hoje o ar condicionado, porque ele não vai ser necessário. Isso permite a racionalização dos recursos económicos. Há, aliás, ganhos ambientais, sociais e económicos, se fizermos uma gestão mais inteligente da energia.

É a ideia de uma cidade, de um edifício, como um ecossistema.
Pensemos num hospital. O Hospital de Santa Maria consome, em termos energéticos, basicamente o mesmo que a cidade de Beja. Podemos maximizar os equipamentos para eles desligarem automaticamente quando não precisarem de ser usados. Podemos trocar lâmpadas, automatizar e ligar serviços entre si, o que permite grande poupança energética. A própria reciclagem e reutilização dos resíduos hospitalares pode ser revista, tal como a gestão do recurso da água. Se, com um telemóvel, nós podemos saber onde estamos, também não é difícil pôr os equipamentos a ligar e desligar algumas horas antes, devagarinho. Isto gera previsibilidade, poupança, qualidade de vida e permite gerar emprego.

Emprego como?
Vamos precisar de estratégias, e há quem tenha de as fazer. A parte sensorial dos equipamentos está inventada, mas em Portugal somos muito bons e ainda podemos ser muito melhores no tratamento dos dados; pegar no que temos e transformá-lo em informação útil, para atuarmos. Precisamos de engenharia, de gente que perceba o que está a acontecer.

Gente que analise as tendências de consumo e as regule?
São precisas pessoas que olhem para o consumo de energia, para o consumo de água e resíduos e perceber o que pode ser ganho em termos de gestão. Olhar para o DNA dos equipamentos, perceber os picos de consumo. Este é um conhecimento que se replica e é altamente exportável.

Mas isso não é uma tarefa limitada no tempo, que se esgota?
Nós até 2030 vamos duplicar a população urbana. Vamos dos 3,5 mil milhões atuais para sete milhões a viver em cidades. Isso vai criar uma série de pressões tremendas, a nível ambiental, enérgico, enfim, de todos os recursos urbanos. As cidades precisam de ser celulares. Até agora tinham uma gestão centralizada – a grande central de produção elétrica, a grande central de captação de água e tratamento de resíduos. Temos de produzir a energia nas cidades.

Em Portugal, 70 por cento da energia é renovável. Barragens, centrais fotovoltaicas, energia eólica – que estão quase sempre situadas em meios rurais. De que forma se aplicam estes conceitos ao meio urbano?
É possível, mas tem de se conjugar dois fatores. Uma produção descentralizada e tipicamente solar e, por outro lado, uma gestão automatizada e eficiente do nosso consumo. As quantidades de energia que se perde no transporte de uma central de energia solar no deserto do Saara é absurda, é um desperdício. Temos de nos focar em soluções mais pequenas e mais localizadas. Começam a existir soluções para as empresas e as cidades não terem de gastar dinheiro. É o que eu quero fazer. O investimento na mudança de todo o sistema de climatização de um hospital permite poupar 40 por cento de energia. Nós mudamos os equipamentos sem custos para a organização, mas ficamos com metade dos ganhos que o hospital tem, ou seja, 20 por cento. Os restantes 20 são ganho do hospital.

O lucro é baseado numa ideia de poupança.
Sim, e numa ideia de parceria. Só podemos fazer estas ações com os nossos clientes se estivermos juntos nelas até ao fim.

Que projetos têm na calha?
Temos projetos no Brasil e no México. Cidades médias, de 200 a 500 mil habitantes, onde os ganhos vêm da poupança de energia, de água, de resíduos e da gestão da mobilidade. A visão agregadora de toda esta informação permite ser muito mais rigoroso e muito mais seguro. Isso vai permitir muito mais ganho. Não faz sentido termos zonas iluminadas de forma igual toda a noite, sem redução de segurança. O mesmo se aplica aos semáforos, às águas e aos resíduos. A plataforma de informação que fornecemos às cidades sobre os seus recursos é, acredito eu, uma ferramenta essencial para pensar o futuro.

Mas como é que a ideia de cidade inteligente se pode tornar uma prioridade quando vivemos uma crise de investimento?
Quando chegarem a Portugal os próximos 21 mil milhões de euros do próximo Quadro Comunitário de Apoio, uma grande parte do investimento deveria ser feita na eficiência das cidades e das organizações. Do ponto de vista político, ter a informação integrada de todos os recursos permite otimizar o esforço de investimentos.

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Em que ponto está Portugal?
As cidades portuguesas têm tipicamente necessidade de fazer investimento na reabilitação – e isso tem que ver com um elevado potencial de poupança. O Estado pode reduzir muito. E há um potencial enorme na iluminação pública. No dia em que eu poupar 20 por cento num hospital, eu liberto recursos para medicamentos. No dia em que poupar 20 por cento em iluminação pública, eu liberto recursos para ação social. Os efeitos de uma crise podem ser mitigados com uma gestão eficiente da energia.

Os mercados da América Latina são novos, há edifícios mais recentes. Não é mais difícil aplicar estas medidas em Portugal?
Estão em forte crescimento e têm um enorme potencial. México e Brasil querem diferenciar-se, mas não têm a mesma abertura dos mercados europeus. A Escandinávia é exemplar, mas Portugal tem feito o seu caminho. Em 2005 tivemos uma seca e houve uma campanha de poupança de água. As pessoas puseram em funcionamento algumas estratégias e, desde então, nunca voltámos a gastar o que antes consumíamos em água. As pessoas puseram garrafas dentro do autoclismo e nunca mais as tiraram. Os portugueses assumiram uma postura de gestão do recurso. Temos potencial, mas há que torná-lo mais fácil.

Isso tem de começar pela transparência, não? Tornar a informação disponível aos cidadãos.
Em Nova Iorque existe uma coisa chamada City Analytics. A cidade disponibiliza livremente toda a informação dos dados em relação à energia, ao policiamento, aos recursos, etc. Isto permite gerir de uma forma muito mais eficiente a cidade, mas também cria emprego, inovação e propostas dos próprios cidadãos.

Em Portugal, há muitas vezes a perceção de haver monopólios energéticos e até cartelização de alguns operadores. Existe vontade política para criar processos de redução da energia?
Quando o ministro do Ambiente fala de economia verde, fala disto. Há um objetivo europeu, que Portugal segue, de redução de energia. Quando as políticas de ambiente, energia e ordenamento do território pertencem ao mesmo ministério, há condições efetivas para adotar não só a ideia das cidades inteligentes, como a de uma economia verde. Poupar energia e recursos gera riqueza e disponibiliza recursos para a criação de mais riqueza.