A frase de Cleópatra, celebrizada por Goscinny e Uderzo na coleção Astérix, revela a importância de provadores que protegiam com o paladar a vida dos governantes. Rastrear venenos ou avaliar chocolates e vinhos requer igual perícia. Porém, o provador de hoje não arrisca a vida e até é invejado. Conheça os provadores oficiais portugueses.
ROSÁRIO RAMALHEIRA
A PROVADORA OFICIAL DOS GELADOS
O nosso painel de provadores é tão artesanal como o nosso gelado», garante Rosário Ramalheira, responsável de Qualidade e Segurança Alimentar da Gelados Santini. «Não há um saber científico ou parametrizado, é uma perceção intuitiva de quem já trabalha na casa há muitos anos.» Sem aditivos, corantes, conservantes ou estabilizantes, os gelados Santini surpreendem até o consumidor frequente. A fruta fresca a isso obriga.
Os padrões de qualidade obrigam a que a prova comece na receção dos produtos. «Fazemos testes de percentagem de açúcar da fruta, medimos o PH e avaliamos a rigidez da superfície, para perceber o grau de maturação.» A banana não pode estar nem madura nem verde. O morango quer-se bastante maduro. Fruta podre é proibida. Se estas regras não forem respeitadas, o gelado final será afetado. A seleção rigorosa das matérias-primas foi facilitada, desde o verão, pelo contacto direto com os fornecedores. «Deixámos de ter intermediário», explica Rosário. Hoje, no balcão de gelados há meloas de Birre e mangas do Algarve. 99 por cento da fruta é portuguesa.
No laboratório, que parece uma cozinha gigante, cheira intensamente a canela. Eduardo Santini, neto do avô Santini e responsável pela produção, acaba de tirar do lume um arroz-doce. O preparado será batido contra os tambores da máquina a 25 graus negativos. Passado um quarto de hora pode ser avaliado já como gelado a -10 graus. É ainda sobre a bancada, com o creme a fumegar, que começa a prova do novo sabor. À volta do tacho, os colaboradores comparam o resultado com memórias dos doces maternos.
Na Santini, há seis provadores experientes que avaliam toda a produção. Primeiro é analisado o aspeto e o brilho, que indica a cremosidade do gelado. «Usamos uma colher igual à do consumidor na loja. Tiramos um pouco, fazemos a mistura na boca e engolimos para sentir o rasto que o gelado deixa na garganta», diz a provadora. A quantidade de açúcar e a formação dos cristais de gelo, que transmite a sensação de frescura, estão entre os parâmetros avaliados. Para Rosário Ramalheira, a principal qualidade de um provador é a sua isenção. «Um dos aspetos que avaliamos é a intenção de compra em loja e, apesar de não ser apreciadora de gelados, sou capaz de decidir se aquele é ou não um gelado Santini.» Por brincadeira, costuma dizer que seria mais feliz se trabalhasse numa fábrica de croquetes. A última prova é ao balcão. As novidades vão para a loja de Carcavelos, contígua à fábrica. Se for bem aceite, o gelado será disponibilizado nas restantes lojas da marca.
MANUEL LIMA
CINCO MIL VINHOS POR ANO
A palavra que melhor define os vinhos do Douro é equilíbrio, garante Manuel Lima. Este engenheiro agrónomo especializou-se em Inglaterra na prova de vinhos, estando entre os dois portugueses que atingiram o quarto grau do Wine & Spirit Education Trust. A escola britânica deu-lhe a abrangência sensorial de vários pontos do mundo, mas é nas provas de vinhos do Porto e do Douro que os seus conhecimentos são testados – está na Câmara de Provadores do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto há 13 anos. Para os apreciadores da região, os números causam inveja. Manuel avalia, no mínimo, vinte portos por dia e, nos vinhos do Douro, chega às 44 degustações diárias. Cinco mil anualmente. Todos os vinhos da região passam pelo seu crivo antes de irem para o mercado. Em provas cegas, avalia – com os outros provadores – se as amostras se enquadram nas categorias a que se candidatam.
Brancos, tintos, rosados, espumantes. A região do Douro é muito rica. Um porto pode ser composto por dezenas de castas, sendo a complexidade do conjunto o que sobressai. «Por isso é difícil tipificar o que é um Douro Reserva ou um Porto Vintage», explica Manuel. «O provador cria diariamente referências para as diferentes categorias.» O estudo é indispensável, mas «uma ida ao mercado para cheirar alimentos» ajuda à construção da memória sensorial de um sommelier. Há, ainda assim, caminhos seguros. Num Porto Vintage «encontramos uma cor muito intensa, retinta, e uma intensidade aromática forte, a frutas negras.» Já um Tawny 10 anos, amadurecido em casco, «terá um tom alourado».
A sala de provas é mantida a vinte graus e a avaliação feita dos vinhos menos complexos, para os mais. Os portos standard são provados antes das categorias especiais, os vinhos jovens precedem os mais velhos e os brancos, os tintos. O vinho tem de estar limpo, depois é observada a cor e são interpretados os aromas. Na boca, deixa-se os taninos libertarem a adstringência no fundo da garganta e a acidez ser capturada pelas laterais da língua. Por fim, cospe-se o líquido e avalia-se a persistência. «Trata–se de uma decisão quase binária de enquadrar ou não aquela amostra na categoria.» A aprovação tem de ser feita por unanimidade. Se as dúvidas persistirem entre os provadores, o vinho é rejeitado.
Poucas vezes Manuel reconheceu um vinho que avaliara numa prova cega, confessa. Há, porém, privilégios que chegam à boca de poucos. Ele não esquece um porto de 1815 que chegou à Câmara para aprovação Vintage: «Aconteceu nos meus primeiros tempos e o sabor ficou até hoje.»
ANA CARRILHO
O ‘TERROIR’ DO AZEITE
A degustação de azeites está padronizada internacionalmente e, apesar de o termo remeter para o paladar, o provador de azeites entrega-se a uma análise sensorial completa, recorrendo ao gosto, à visão, ao olfato e ao tato. A sistematização do processo de prova permite que os melhores azeites se destaquem e exacerbem o que Ana Carrilho, responsável pelo azeite Esporão, define como sendo o terroir. A palavra francesa tem em si um conjunto complexo de fatores que incluem a biologia da oliveira e determinam a qualidade final. O termo apareceu em meados do século xix e a sua influência nunca foi provada pela ciência, estando quase no domínio da crença. «A terra condiciona muito as variedades, o tipo de rega, o processo de cultivo e a acidez e amargor do azeite», resume a especialista que faz parte do painel de provadores do Instituto Superior de Agronomia (ISA).
Na sala de provas da Herdade do Esporão, em Reguengos, os copos azul-cobalto ocultam as tonalidades do azeite, evitando julgamentos prévios por parte dos provadores. A cor depende «da variedade ou do grau de maturação das azeitonas e não há uma relação direta entre a cor e a qualidade do azeite», garante a provadora. O azeite é aquecido a 28 graus, temperatura ideal de prova que «exacerba a volatilidade de todos os compostos aromáticos». Um vidro côncavo, semelhante ao do mostrador do relógio, aprisiona os aromas. No momento em que destapa copo, a provadora inspira profundamente e descreve o aroma agradável, identifica a intensidade do frutado verde ou maduro – que varia com a maturação das azeitonas – e utiliza um léxico rico e próximo do dia a dia para detalhar a sensação. «Maçã verde», conclui, resoluta.
Segue-se a análise gustativa, diz Ana, que, ao contrário do que experienciamos em casa, «não passa por molhar o pão no azeite». É aspirado com vigor, com muito ar, para ganhar oxigénio e volteado na boca por algum tempo. «O amargo e o picante são percetíveis no paladar e dependem das variedades e do grau de maturação das azeitonas». As cordovil e as cobrançosa são conhecidas pelo seu picante e amargor quando estão verdes e responsáveis pelos azeites mais aromáticos. A galega, por ser mais doce, «é muito apreciada por consumidores menos experientes». Desta prova sensorial sai a classificação do azeite entre virgem, virgem-extra e lampante. «Um virgem-extra é um azeite sem defeitos e harmonioso.» O lampante, pela sua falta de qualidade, não pode ser comercializado.
ADELINO CARDOSO
PAUSA PARA CAFÉ
Bica, italiana, cimbalino, abatanado. No que toca a cafés, somos prolíficos até no léxico. Oito em cada dez portugueses bebem café diariamente e aos pares, numa média que ultrapassa os dois expressos por dia (European Coffee Federation, 2013). Mas quantos é que degustamos? Adelino Cardoso, há 37 anos na Delta, leva 25 de provador de café e aconselha um roteiro de prova detalhado. «Um expresso perfeito vê-se na altura do creme, na cor avelã com umas nuances brancas que permanecem na última pinga.» O açúcar é absolutamente desaconselhado porque «mascara a acidez e o amargor natural do café». Ainda assim, quando colocado, «terá de ficar algum tempo assente sobre o creme antes de ser absorvido». Se o lote tiver a moagem adequada, o correr da máquina será lento: «Uma extração muito rápida significa um café menos acentuado.»
Saborear um café «é uma viagem às suas origens», por isso o consumidor deve conhecer as espécies de café existentes para definir o seu perfil.
As mais aromáticas são as arábicas, cultivadas em altitude, originárias da Etiópia, muito perfumadas, doces e ligeiramente ácidas. Já as robustas, difundidas na África, na Ásia e no Brasil, conferem corpo, persistência e amargor. É da harmonização dos grãos destas duas espécies que se formam os blends de café, mais aromáticos ou mais encorpados. «O café, pela força das robustas e a acidez das arábicas, vai provocar um choque com as papilas gustativas», explica Adelino. O truque passa por levar o café à boca, fechar a garganta e envolvê-lo, repousá-lo, mastigá-lo durante alguns segundos. O próximo golo terá uma aceitação diferente porque a boca foi preparada. Quando o café desce pela garganta, analisa-se o amargor e a persistência. «É um amargo que tem que ver com a origem dos grãos, não é um amargo que pique ou arrepie, indicando problemas de torra.»
O expresso final que bebemos é o resultado de um longo processo, muito condicionado por estas provas sensoriais em laboratório. Do provador depende a aprovação das matérias-primas. Todos os lotes que chegam à fábrica da Delta, em Campo Maior, são avaliados antes de entrarem em produção. Mal o contentor é aberto, são retiradas amostras de grãos que, em laboratório, são torradas, moídas, dispostas em taças e misturadas com água mineral em ebulição, antes da prova. Cada amostra é avaliada por três provadores, que têm de estar de acordo. «Cabe ao provador identificar algum defeito aromático ou de sabor», explica Adelino. Ele chega a avaliar 200 taças por dia, usando uma pequena colher de prata «que não empresta sabor ao líquido». Nos intervalos de descanso não dispensa a pausa para café.
SOFIA VIERA DA SILVA
O BOM CHOCOLATE FAZ ‘CRECK’
Nove em cada dez pessoas adoram chocolate e a décima está a mentir. O mandamento flutua na internet, atribuído a John Q. Tullius, e as dúvidas sobre a biografia do autor não maculam a verdade: somos doidos por chocolate. Esta certeza coloca Sofia Vieira da Silva, diretora do departamento de Investigação, Desenvolvimento e Qualidade da Imperial, entre os profissionais mais invejados do planeta. Por ela passam todos os lotes produzidos na maior fábrica de chocolate do país, antes de chegarem ao consumidor final. Prova, em média, 75 gramas de chocolate por dia, o que anualmente poderá representar mais de 15 quilos. O consumo médio per capita em Portugal é de 1,9 quilos de chocolate por ano (INE, 2011). Mesmo assim, garante que continua «a ter desejos de chocolate» e elege o nostálgico Flock Chock da Regina como o seu preferido.
Na Imperial, o ponto de partida da prova dá-se na receção das matérias-primas. A pasta de cacau e a manteiga de cacau, originárias do Gana e da Costa do Marfim, são avaliadas à chegada. Já em linha, os diferentes operadores das máquinas provam o chocolate nas fases mais críticas: refinação, moldação e embalamento. Uma amostra de cada lote é levada ao laboratório de qualidade. É nessa sala ampla, colorida pelos tons das famosas Pintarolas, que Sofia Vieira da Silva inicia a prova sensorial do produto acabado.
Mal o papel do invólucro é rasgado, o brilho do chocolate surge e, pelas narinas, sobe a intensidade do aroma a cacau. «O painel de provadores está treinado para detetar qualquer odor indesejado», garante. «Excesso de torrado, por exemplo, é um sinal de alarme.» O olfato ganha importância redobrada devido ao perfil absorvente do chocolate. «Se colocar uma tablete junto de um perfume, ela vai cheirar ao perfume.» Entre os dedos, percebe-se a resistência ao calor, e com uma ligeira pressão surge o creck, onomatopeia obrigatória no momento em que se parte o chocolate. Na boca, avalia-se a dureza e a fusão com a saliva. «Queremos que ele derreta e que se sinta o macio, liberto de qualquer grão que indiciaria problemas na refinação», descreve a provadora. Numa perscrutação atenta de sabores, voluteia-se a língua.
Dezembro representa o pico da produção para a Imperial. É também a altura do ano mais exigente para Sofia Viera da Silva. Licenciada em Engenharia Alimentar, mestre em Ciência e Tecnologia de Alimentos, com doutoramento em Engenharia Bioquímica, garante que «ser provadora de chocolates não é uma profissão», mas uma das suas atividades diárias. A mais doce.
RITA MOURA
MAIS COMPLEXO DO QUE BEBER IMPERIAIS
Sabia que a cerveja com que vai acompanhar o jogo de logo à noite poderá ter aroma a acetato de amilo, acetaldeído ou diacetil? Ou, dito de outra maneira, a banana, a maçã-verde ou a manteiga. Este é um dos primeiros desafios de um provador de cervejas – catalogar a sua memória sensorial –, explica Rita Moura, responsável da produção de mosto da Central de Cervejas e Bebidas. «Começamos por provar os vários aromas diluídos em água, numa concentração elevada. São aromas que encontramos nas provas de cerveja em menor concentração.» Cabe a cada provador criar as suas próprias referências sensoriais, fazendo a ligação entre os aromas e os cheiros do dia a dia. «É um processo pessoal e a facilidade de detetar determinado aroma varia. Há um que me faz lembrar couves, que identifico imediatamente porque odeio couves.»
A trabalhar há seis anos na Centralcer, Rita Moura faz parte do painel de provadores há cinco. Foi certificada após um processo de formação e depois de passar com mérito na avaliação final, identificando mais de 80% dos aromas presentes nas cervejas. A memória sensorial é, porém, volátil, «perde-se e ganha-se», e os provadores da Central sujeitam-se anualmente a testes. Se falharem, são recalibrados. Treino é o melhor amigo do provador, e esse «não é feito no café a beber imperiais com os amigos».
Na produção de cerveja são realizadas as chamadas provas go, no go. «Procuramos aromas que não deveríamos encontrar naquele ponto de fabrico, cores estranhas, cheiros que não sejam habituais.» Quando uma situação fora do normal é detetada, ajusta-se o processo para que o perfil organoléptico pretendido seja alcançado. As provas de produto finais são feitas semanal ou quinzenalmente. Os cerca de 40 provadores funcionam como verdadeiros guardiões do ADN da marca. Bem mais do que procurarem defeitos nas cervejas, avaliam a conformidade das características. «A nossa cerveja tem um determinado corpo e amargor e um sabor ligeiro a malte. É um perfil que conhecemos e é contra ele que vamos comparar.»
Há semelhança dos sommeliers, o provador faz rodar a cerveja no copo, libertando os aromas até aí aprisionados por debaixo da camada de espuma. Mas ao contrário do que acontece nas degustações de vinho, a cerveja, depois de volteada na boca, é engolida para que o amargor do lúpulo possa ser sentido no final da garganta. «Provamos, não bebemos cerveja», esclarece Rita Moura, evitando qualquer mal–entendido e exigências futuras de testes de alcoolemia.
DICAS PARA O PROVADOR INICIANTE
» As provas devem ser feitas antes de almoço, altura do dia em que os sentidos estão mais despertos.
» Duas horas antes da prova não deve ser ingerido qualquer alimento, principalmente sabores persistentes como cebola.
» Os fumadores devem evitar os cigarros antes das provas porque o tabaco mascara os sentidos.
» Bebidas geladas e dentífricos prejudicam a prova. A pasta de dentes, no caso dos vinhos, acentua a acidez.
» Entre provas pode comer uma fatia de maçã verde ou uma bolacha de água e sal para «lavar a boca».
» Treinar é a melhor conselho que se pode dar a um provador. A memória sensorial é pessoal e deve ser catalogada com referências do dia a dia. Vá ao mercado, cheire e prove.
[Publicado originalmente na edição de 12 de janeiro de 2014]