Carlos do Carmo: E depois do Grammy?

Aos 50 anos de carreira, não para, embora tenha um limite de concertos – imposto pelo médico. Cumpre-o com rigor e esforço, porque estão sempre a convidá-lo para mais. Numa conversa a propósito do Grammy que acaba de ganhar – feita na exposição que inaugurou em Lisboa, a sua cidade, que canta como ninguém –, Carlos do Carmo revela a energia e o pensamento que o fazem reinventar-se a cada novo projeto.

Que fado trautearia para representar o momento que está a viver, o do reconhecimento internacional nos 50 anos de carreira?
_Tinha de ser um medley. Que teria no mínimo aí uns 14 fados dos que gravei. Mas não me peça às quatro da tarde para fazer um med­ley, até um fado me custaria a cantar. Tenho a voz colocada só à noite.

Tem o Prémio Goya, tem agora este Grammy latino. Já recebeu mais prémios lá fora do que cá dentro?
_Não, não! Cá dentro recebi todos os prémios que havia para rece­ber. Não me sinto maltratado pela minha gente, bem pelo contrário. A primeira questão que se coloca sempre, antes dos prémios, é o favor do público. E o público nunca me faltou. Ao fim de 50 anos poderiam estar enjoados, já não me quererem ouvir. Mas tive a prova, no ano passado, na celebração dos 50 anos de carreira, as salas onde cantei estavam esgotadas com dias de antecedência. Isso foi uma coisa que me comoveu e que me surpreendeu. Nunca pensei, tendo a admira­ção que tenho pelo Zeca Afonso, que ganharia o Prémio José Afonso da Câmara Municipal da Amadora. Depois há aquelas coisas institu­cionais. O presidente Sampaio, de quem gosto muito…

Foram colegas de escola, certo?
_De liceu. Tornou-me comendador, nem percebo nada disso, co­mendador não sei das quantas. Recebi a medalha de ouro da cida­de de Lisboa das mãos do Dr. Pedro Santana Lopes e do Dr. António Costa, a minha cidade reconheceu-me. Tenho a chave de ouro de Santiago do Cacém, só o Dr. Sampaio e eu é que temos. Tenho uma peça lindíssima oferecida pela Câmara do Seixal. Tenho uma quan­tidade de coisas oferecidas e pequenos prémios de muito significado na minha terra. Os internacionais têm outra dinâmica. Estas coisas começaram quando, em 1980, cantei no Olympia de Paris. Na altura era gerido pela família Coquatrix, um judeu, muito culto e sábio. Ele anunciar um artista pressupunha que a sala ia estar cheia porque o critério dele dava garantias. Lançava artistas. Quando lá cantei entrei no catálogo internacional. E desencadearam-se conhecimentos, fui tendo discos gravados lá fora, na Polónia, França, num tempo em que o fado aqui em Portugal, isto eram anos 80.

… Estava malvisto…
_Malvisto! Mas a Amália já vinha com o balanço todo lançado da sua maravilhosa voz. E nós nunca paramos. O trabalho fez-se. Quando comecei lá fora as pessoas ficavam muito surpreendidas, pensavam que eram só as mulheres que cantavam fado…

Este reconhecimento internacional dá-lhe uma outra responsabilida­de, tendo em conta que também está a representar o nome do país?
_Isso eu sinto desde sempre! Não que mo tenham pedido, não me foi solicitado. Cedo percebi que vivia num país pobre, pequeno e perifé­rico. Quando comecei a cantar lá fora, quando ir para cada país pres­supunha um visto, ao pisar o palco sentia muito esse orgulho. Fala­va dos meus poetas, da minha cidade, da minha terra. Fui-o fazen­do em tempos de ditadura, no Paris dos bidonvilles. Lembro-me bem da história da emigração. Com os prémios a responsabilidade foi au­mentando. O público sabe que «este sujeito já ganhou o Óscar do ci­nema espanhol, que é o Goya, ou o Grammy». Mas, para ser profun­damente sincero, nada se alterou. Tenho de ser mais cuidadoso. Não é no que digo, que sou um desbocado, mas na minha atitude peran­te a vida e ter uma família que me vigia bem para não fazer dispara­tes. Porque vivemos um mundo – não só num País –, em que se pas­sa de bestial a besta em 24 horas.

Este prémio, que será entregue em novembro e que já distinguiu no­mes como Ella Fitzgerald, Dylan, Jobim, entre outros, pode dizer-se que é a sua entrada para a galeria dos imortais?
_Isso não sei. Estive uma hora ao telefone com o presidente da aca­demia, um homem muito experi­mentado, de Miami para Lisboa! A determinado momento quase me pedia desculpa e eu estava a ficar embaraçado. Disse-me «sabe, vocês portugueses não mostram a vossa música, não se dão a conhe­cer e isso é mau, porque têm grandes artistas. E a si peço-lhe descul­pa porque já há muito tempo que lhe devíamos ter dado este prémio. Estivemos os 16 a analisar a sua obra e consideramos que é uma coi­sa notável. Não é só no percurso artístico, cantado, na diversidade. É todo o contributo que você foi dando para o fado». Eles sabem tudo! Pediram-me desculpa por me darem uma coisa que eu não estava à espera. E a terminar disse: «Quero que saiba que, por unanimida­de, consideramo-lo um dos seis maiores cantores vivos na terra.» Fiquei calado, foi um soco no estômago. Felizmente que já passei a fase daquela soberba…

Quem é o que o felicitou, dos políticos?
_É giro que fale de política, também tem piada. Estive a morrer há 14 anos e era uma loucura o telefone lá de casa. Desta vez, foi pior ain­da. Entre mails, telefonemas para o telemóvel da minha mulher (que eu não entendo dessas coisas), para o fixo, mais as mensagens para o meu produtor, foram centenas e centenas a querer falar comigo. Te­lefonou-me um velho amigo de Los Angeles que me disse que nos Es­tados Unidos circulavam também centenas de mensagens. Até me disse: «Olha que tens as portas abertas para os Estados Unidos.» Ao que respondi: «Pois, agora que sou uma jovem promessa, isso é mui­to interessante.»

E quanto aos políticos…
_Gostava de dizer o seguinte, e alegra-me muito o que lhe vou dizer: quando ganhei o Prémio Goya recebi telegramas do Dr. Mário Soa­res, do Dr. Sampaio e do general Ramalho Eanes. E fiquei muito fe­liz, pensei «isto, politicamente, está como gosto». Desta vez, recebi um telefonema do Dr. Mário Soares – não atendi, tenho de retribuir. Um do Dr. Jorge Sampaio que não me passaram e por causa disso dei uma grande bronca à minha empregada, que não sabia quem era nem quem ele tinha sido. Telegramas do general Ramalho Eanes, do secretário de Estado da Cultura e do Jerónimo de Sousa. Ah, e a pri­meira pessoa que me telefonou, com muito carinho, muita amizade, foi o presidente da Câmara de Lisboa, o Dr. António Costa. E para­mos aqui. Politicamente, espero que tenhamos parado aqui.

Não estava à espera de receber os parabéns do Presidente da Repú­blica e do primeiro-ministro?
_Pedia-lhe, não é que me omitisse a pergunta, mas que não me obri­gasse a responder.

Porque é que acha que este reconhecimento internacional chega agora?
_Porque as coisas constroem-se com a vida. Tive um longo per­curso das pedras, tomei posições políticas neste país que não são as melhores para quem quer fa­zer uma carreira artística e pa­ra quem quer o benefício dos me­dia e dos patrocinadores. Escolhi o pior caminho. Mas valeu a pena. Porque se uma pessoa faz as coi­sas pelas suas convicções, mes­mo que erre, não fica de mal con­sigo próprio. Não impinge as su­as ideias aos outros, são as suas, a democracia é feita disso, de con­traditório, de diferenças. Tenho muito respeito por quem não pensa como eu e gosto de debater. E de pensar o País, senti-lo, vivê-lo. Só que como fiz esse caminho das pe­dras isso gastou, talvez, os anos bons da minha vida, entre os 40 e os 50 anos. Mas nunca parei.

Já pensou no discurso que vai fazer em Las Vegas?
_Não faço a mínima ideia. Em espetáculos faço um alinhamento e jamais na minha cabeça fica marcado o que quer que seja para dizer. As pessoas têm a maior importância para aquilo que digo. Em fun­ção das suas respirações, silêncios, aplausos, sai uma nota de humor, qualquer coisa que me ocorre. Não vou poder fugir àqueles discur­sos clássicos de Hollywood, agradecer à «minha mulher, aos meus fi­lhos, aos meus avós, aos meus pais». O resto, não faço ideia.

Vai fazer um alerta sobre Portugal e os portugueses? Ou vai resistir a esse tema?
_Essa pergunta faz parte do grupo daquela que me fez há bocado, que não vou responder agora.

O facto de Portugal estar na moda, sobretudo no turismo, ajudou? As pessoas lá fora estão a reparar mais em Portugal?
_As pessoas estão a reparar em Portugal por duas razões. Primeiro, porque Portugal faz parte da Europa. E depois, porque Portugal é completamente diferente e quem viaja sabe isso. Lisboa é uma cidade sui generis. Há que ter apreço pelo trabalho de quem foi pondo a população virada para o rio, porque vivemos anos nesta coisa sombria, de costas para o Tejo. Isto deu luz à cidade. E o português é acolhedor, sem ser servil. Deixe-me circunscrever à minha cidade, sendo eu bairrista. Mas Lisboa tem uma luz imbatível. As pessoas ficam desvairadas. Os miradouros, os bairros antigos que são o pulsar de uma história de quase 900 anos. E tem uma autenticidade… Pode-me dizer, em contraponto, que tem um parque imobiliário que está miserável. Pois está. Sabe quanto custa restaurá-lo? 8300 milhões, que é o valor do serviço nacional de saúde.

Esteve a estudar esses números?
_Sou mandatário do Dr. António Costa e reunimo-nos, não sou um mandatário de penacho. Em seis anos de trabalho tornei-me amigo dele. Gosto dele, genuinamente. Habituámo-nos a falar sem rodeios. Claro que há coisas que não vou aqui dizer, mas esta posso. Não faz ideia também quanto custa tapar os buracos de Lisboa! Uma fortuna!

Voltemos à música. Agora os médicos não o deixam cantar tanto?
_Fui até, o ano passado, aos 20, 22, 24 concertos, no limite. E o meu médico disse-me: «Meu caro Carlos, a aorta abdominal, como sa­be, foi operada três vezes, tem lá um tubozinho de Teflon, está re­solvida. Mas a de cima está a dilatar. É chato você morrer em cima de um palco, de maneira que não vamos abusar, não vou ser tirano mas é só um concerto por mês.» Vou tentar cumprir. Já fiz seis es­te ano, tenho seis para fazer.

Agora virão muitas solicitações.
_Vieram, antes do prémio, 50 so­licitações para festas populares. Andar, aos 74 anos, a comer pó da estrada e dos recintos onde se canta, é abreviar a morte! E eu es­tou como o Maurício quando lhe perguntavam «então, o que é que pensa da velhice», e ele respondia «a velhice é ótima, é melhor do que estar morto».

E nestes dias, após saber do Grammy, cometeu alguns abusos?
_Cometi. Um dos dias, eu e a minha mulher estávamos num grupo de amigos e… comemorámos. Saímos os dois, encostadinhos um ao outro. Meteram-nos dentro do carro, estávamos a cambalear um bo­cadito. Não era má figura, mas estávamos bem quentinhos.

Não gosta muito que se diga que o fado está na moda…
_Não, não. Detesto.

Mas não é mesmo assim?
_Não, nada! Não pense nisso.

Então há uma reinvenção?
_Também não é reinvenção. O fado teve o Joaquim Campos, o Mar­ceneiro e o Armandinho, só para falar destes três, ou mesmo do nos­so Britinho, quatro. Estas quatro figuras são fundamentais do fado… Ora reinventá-los tem muito que se lhe diga! Uma coisa é ser-se jovem, outra é reinventar. Até porque se pode ser jovem e ser-se velho. Eu oiço alguns políticos jovens que têm um discurso velhíssimo, mais velho do que o meu. Isto requer paixão, requer reflexão. A nova ge­ração tem uma vantagem, que a minha não teve. A minha, a que per­tence o João Braga, o Fernando Maurício, a Maria da Fé, a Beatriz da Conceição, o António Rocha e outros, foi a ponte entre essa geração de ouro e esta, que lhes deixou a papinha toda feita. Têm um museu que é a casa dos fadistas, onde podem saber em que ano, em que dia!, o Alfredo Marceneiro cantou que fado, conhecem os poetas, está lá tudo. É um trabalho seríissimo. Fizemos o filme do Saura que é um filme de culto. E depois, a candidatura, que não é um ponto de che­gada, é de partida, obriga-nos a coisas que estão para ser feitas. Este trabalho não foi feito em vão. A minha mãe teve o privilégio de ouvir os grandes mestres e com eles aprender, mas era uma tradição oral. Entretanto, até conseguimos convencer o professor Rui Vieira Nery a escrever um livro Para Uma História do Fado. O último livro de fun­do tinha um século. Veja só o que isto tudo progrediu. É um trabalho para continuar. Donde que essa questão de invenção… estamos à es­pera dela. E moda não, porque a moda passa.

O fado deixou de ser uma canção estigmatizada, os jovens passaram a ir ouvir fado. Não têm vergonha de dizer que cantam e que ouvem.
_Sim, sim! É a história da nossa vida. Como é que hei de dizer isto de uma forma benévola, não ser agressivo com a minha gente… Desde que me recordo temos um défice gigantesco de elites. Neste caso do fado, as elites de esquerda tinham um preconceito em relação ao fa­do, tremendo! E o líder era o saudoso e grande músico mestre Lopes Graça. Tivemos os dois muitas conversas e ele acalmou. E com is­so a esquerda acalmou. Também tive longas conversas com o meu amigo Álvaro Cunhal, que não ti­nha preconceito em relação ao fa­do, mas havia outros camaradas dele que tinham. E a chamada es­querda caviar, ui, isso então! Hoje já vão aceitando melhor. Há aqui um contributo elevadíssimo dado pela Amália, quando ela se atira de cabeça, pela mão do Alain Oul­man, e canta os grandes poetas. E aí, o pessoal teve de recuar. Co­mo sou maluco, não para a imitar mas por necessidade própria, dei andamento a essa ideia. E as coi­sas acalmaram e serenaram. Ao princípio, lembro-me tão bem de uma pessoa de esquerda chegar ao pé de mim e dizer «eh pá, eu sou de esquerda e gosto tanto que sejas de esquerda, mas chateia-me que cantes o fado». Respondi: «Isso passa-te.»

A certa altura, nesses anos 1980, perguntavam-lhe se o fado ia aca­bar. E agora, o que perguntam, é quem está aí de novo a cantar?
_E não só! O que é que augura para o futuro? Nós somos assim, ciclo­tímicos. Como eu! Os artistas são quase todos. Tomo remédios para andar direitinho, com juizinho.

Agora, todos os anos há uma nova voz.
_Uma?! Várias! Isso só é possível porque temos excelentes jovens guitarristas. Estes meninos tocam muito! Usam aqueles aparelhos esquisitíssimos – não percebo nada de tecnologias –, nos ouvidos, ouvem muita música.

E conseguem cruzar essas várias influências?
_Não ficam no gueto fadista. E isso traz-lhes novas harmonias, uma dinâmica que é belíssima. E há outros que se confinam ao fado tradicional de uma forma muito e criam um contraponto de riqueza. Cantar com eles é maravilhoso.

Passa a vida a descobrir e a lançar novas vozes do fado. É o padrinho ou o pai desta gente toda? Eles consideram-no todos o mestre…
_Nem uma coisa nem outra! Padrinho tem um ar assim um bocado… não! Nem pai! O que esta gente jovem sabe, toda sem exceção, é que estou com eles. Mas sou um chato, digo-lhes sempre: «Isto é a sério, vê lá o caminho que escolheste porque isto não é só para ganhar di­nheiro, é mesmo para trabalhar e dar muito, porque se o público nos deixa a gente cai como um saco de papel.» O público é uma entidade que não é estúpida, não é abstrata e é muito mais sensata do que pen­samos. Queixo-me sempre das elites, não é do público.

Mas são as elites que estão no poder.
_Como dizia o outro, aquilo é uma choldra que não se governa nem se deixa governar. Só que eu não aceito isso. Até morrer, não aceita­rei. Portugal faz-me lembrar um barco que tem bombordo e estibor­do e que está todo virado a estibordo, todo no litoral, com meia dúzia de gatos a bombordo, o interior deserto. Isto não tem nenhum senti­do. Não há um pensamento estruturante e enquanto não houver os nossos velhos e os nossos jovens vão sofrer muito.

É um homem inquieto?
_Eternamente inquieto.

E um homem político, também é?
_Dentro do que é a intervenção cívica. Nunca tive cargos. O único que aceitei, pro bono, foi este de ser mandatário do Dr. António Costa. Consultei a minha família. Ser mandatário é uma coisa que me ex­põe mas que me responsabiliza. E são seis anos, muito bons.

Mas nunca foi desafiado?
_Que me lembre, não. Um artis­ta é um perigo. Convida-se um artista para ser político e se há qualquer coisa que não está a cor­rer bem, a gente parte a loiça to­da. Tive um amigo, o Dr. Álvaro Cunhal, e fizemos amizade fa­lando de tudo menos de política. Era um artista, era maravilhoso falar com ele, falávamos da vida, família, filhos.

Os seus netos têm desenhos origi­nais dele, na prisão.
_Os quatro netos têm desenhos assinados por Cunhal.

Essa amizade com Álvaro Cunhal como é que acontece? Nunca foi filiado no PCP nem em nenhum partido?
_Não, nem ele me pediu isso! Era um homem superiormente inteli­gente. Uma vez, na embaixada da União Soviética, de repente vejo-o vir disparado na minha direção. Tinham sido as eleições em que eu ti­nha cantado de norte a sul e nas ilhas, a pedir que votassem APU. E ti­nha tido multidões a ir ouvir-nos cantar, o que nos deu alguma ilusão. Mas a AD ganhou estrondosamente. Então, com aquele aperto de mão vigoroso que ele tinha, disse-me. «Queria, em meu nome e em nome do nosso partido, do meu partido, agradecer-lhe, já sei do seu imenso contributo.» E eu disse-lhe: «Dr. Cunhal, não me faça isso, não me agradeça. Se alguém aqui tem de lhe agradecer sou eu, porque só de pensar que esteve tantos anos preso e eu vivi cá fora no meu bem-estar. Mas quero-lhe dizer que se por acaso o seu partido for poder, serei o primeiro a emigrar.» Ele olhou para mim, com aquele ar felino, mas depois com aquele humor especial, apertou-me a mão com vi­gor e respondeu-me: «De si não esperava outra coisa.»

Como é que a música e o fado ajudaram a mudar o sistema político em Portugal? Ajudaram?
_Tudo deu um pequeno contributo.

Hoje em dia, tem amigos em todas as áreas políticas?
_Tenho. Não confundo as questões. Morreu agora um amigo meu, um grande intelectual, Vasco Graça Moura. Dávamo-nos maravi­lhosamente mas eu picava-o sempre. Mas isso é que é saudável. As pessoas têm medo de discutir, têm medo de divergir. Porquê?!

Nunca se sentiu discriminado politicamente?
_ Caramba! Houve um período…

Nos anos 80? O seu disco, Mais do Que Amor É Amar, quase que nem passou na rádio.
_Não passou na rádio. Estive cinco anos sem cantar na RTP. Se isto não é discriminação, o que é que é?

Depois até teve programas. Não aceitaria voltar a fazer um programa de televisão?
_Já não tenho paciência. Não tenho saúde nem habilitações literá­rias já para isso. Mas na altura foi o Dr. Proença de Carvalho que me levou de volta à RTP.

Porque é que aceitou cantar todas as canções do festival de 1976? Foi um festival político?
_Foi um desafio maravilhoso. Foi apenas interpretado como um festival político.

Teve belas canções. Algumas que ainda canta.
_Era isso que estava em causa! O meu saudoso amigo Luís Andra­de e o Zé Nuno Martins telefona­ram-me, separadamente, «Car­los, estávamos a pensar fazer um festival em que tu cantasses as cantigas todas». Eu: «Isso é giro, quanto tempo tenho?», «Quinze dias». Então, o Thilo Krassman e eu fomos para Cascais, para uma vivenda de um comandante da TAP amigo do Thilo e como doi­dos ficámos ali 15 dias fechados a trabalhar. As nossas mulheres fo­ram-nos visitar uma vez ou duas. Estávamos ali como doentes. Eu, a decorar a Estrela da Tarde, subia e descia a escada, parecia um maluquinho. São 800 e tal palavras. Mas chegou o dia do festival e cantei as cantigas sem papel à frente.

E ainda hoje são das favoritas.
_Canto quatro ou cinco nos meus concertos. Festival político por­quê? Porque o Ary era comunista, o Manuel Alegre era socialista? Então e agora, já ninguém é político, ninguém é de nenhum partido?

Como é que sentiu o impacto desta crise que estamos a viver?
_Pessoalmente nunca fui um homem de carros de luxo, exuberân­cia, sinais exteriores de riqueza. Centrei-me em três bancos que te­nho, que são sólidos: os meus filhos. Tive um desejo na vida, e isso custou-me a saúde porque obrigou a muito trabalho: dar uma casa a cada filho. Eles não sofrem o que estão a sofrer os jovens. Tinha qua­se a certeza de que isto ia acontecer. Achava que era de mais o que es­tava a passar-se, não tinha sentido. Ver os sujeitos que eu via a cair de mortos 15 dias antes passarem depois de BMW e de Mercedes. Mas quem dá uma casa a cada filho não fica a nadar em dinheiro. A minha mulher e eu temos uma atitude muito positiva na vida, ela investe imenso nos netos, a conta bancária vai sempre por aí abaixo

São quatro, não é?
_São. E grandes, tudo gente crescida. Jantávamos muito fora. Ago­ra janto um terço das vezes. A família são 12, é uma conta e tanto…

Nunca cometeu nenhuma excentricidade, um disparate, nunca lhe apeteceu comprar um grande mimo para si?
_Não, normalmente quem se encarrega disso é a minha mulher e os meus filhos. Gosto de gravatas, herdei esse hábito do meu pai. E a minha mulher compra-me fatos bons para cantar, são a minha farda. Depois ela lá compra outras coisas que, como sou daltónico, às vezes nem percebo bem. E temos os dois um hábito muito engraçado, ela mais do que eu: guardamos os trapos. Ela de vez em quando aparece–me com um vestido – porque tem o mesmo peso que tinha quando se casou, mais um ou dois quilos – que não via há muito mas reconhe­ço. E ela: «Tem 30 anos.» Somos assim! E gosto de ajudar.

E têm vindo mais pessoas pedir-lhe ajuda?
_De uma forma discreta, sim. Tenho conseguido às vezes arranjar empregos a alguns, que é a coisa mais preciosa que se pode arranjar a uma pessoa neste momento.

Continua crítico desta governação e desta Presidência da República?
_Cada dia que passa sinto, sinceramente, que de uma forma treslou­cada se corre para o abismo.

Essa corrida não para?
_Claro que sim. Alguma vez a história de Portugal parou, nos qua­se 900 anos? Não me vai dizer que não há em Portugal gente capaz, claro que há. Só que quando lhe falam em entrar na política não querem porque não estão para ser enxovalhados. Não estão para se imiscuir na teia em que os parti­dos políticos perderam a noção da sociedade. A liberdade é um bem precioso e a democracia cons­trói-se todos os dias. Não é com indiferença, com o “eles são todos iguais”, isso é fácil de dizer. É pre­ciso tornar alguns diferentes. Em todos os partidos, sem exceção, há gente boa! Para quando uma coli­gação dessa gente boa? Querem-lhe chamar de salvação nacional, chamem, não se importem! E depois, arranjem um presidente.

Nunca pensou nem nunca teve na família gente a emigrar?
_Não. Nem agora nem antes. Tenho uma família alentejana e uma família lisboeta, praticamente desaparecida uma e outra. A alen­tejana emigrou, sim, mas de Portalegre para Lisboa. O meu avô e a minha avó com seis filhos. Era operário fabril. A minha mãe, aos 11 anos, também era operária fabril, veja bem o que foi a vida. Já o meu pai e o meu avô eram de Lisboa, e os meus filhos, os meus netos, são todos de Lisboa. Somos lisboetas até ao tutano.

Os seus netos não lhe falam em emigrar?
_Até agora, não. Um dos rapazes está a tirar um curso ligado a des­porto e é muito bom, é cinturão negro de karaté e dá aulas aos miú­dos. O outro tirou marketing e tem um emprego, curiosamente é um estagiário em que lhe pagam, cumpridor, às nove da manhã o rapaz não falha. Quer fazer o doutoramento. As minhas netas já pensam de outra forma, talvez queiram ir lá para fora.

Se fosse ministro da Cultura…
_Nem pense nisso nem ponha essa hipótese!

Então, o que é que mudava na nossa política cultural?
_Lembro aquilo que Churchill fez no pós-guerra: Londres des­truída, aquilo tudo a cair e aparece um deputado lá do Parlamento a dizer «vamos começar a organizar a nossa economia e temos de fa­zer cortes. E vamos começar na cultura». E ele levantou-se e, com o seu charuto na boca, recusou: «Cortar na cultura? Não pode ser. En­tão qual é o nosso futuro se nós cortarmos na cultura?» Se o Chur­chill respondeu isso e era um homem de direita, o que faria eu?!

A geração mais nova ainda são os tais putos rebeldes que depois se sen­tarão ao colo dos pais para aprenderem a serem homens? Ou estarão resignados com o País que lhes estamos a deixar?
_Não lhe chamaria resignação, chamaria uma coisa da qual nós te­mos um pouco de culpa. Dramaticamente não ligam à política. Ora, as soluções são políticas. Enquanto eles não ligarem à política, o país não avança. Enquanto os jovens não tomarem a rua, enquanto forem os velhinhos com as bandeiras, não vamos a lado nenhum…

Houve recentemente dois movimentos em Portugal um bocadinho perto disso, este «Geração à rasca», primeiro, e o «Que se lixe a troika».
_Lindíssimos! Com crianças com os pais, nos carrinhos de bebés, uma menina que parou em frente ao FMI e deu uma flor a um polí­cia! Na Grécia ou em Espanha, uma coisa destas, partiam tudo!

Vamos à sua parte mais pessoal. Voz, coração, racionalidade e cabeça. O seu fado é um bocadinho disso tudo?
_Esse triângulo tem de funcionar. Mas depois, há dias em que a emoção supera tudo… A última vez que cantei foi em Madrid, num festival de fado. Fiquei mui­to emocionado: bateu-me à por­ta o Pedro Almodóvar. Fiquei tão feliz!

Aprendeu primeiro a falar ou a can­tar fado? A sua mãe cantou até aos oito meses de gravidez…
_A falar! Era um incontinente verbal. Ia para casa da minha tia Daniela, irmã do meu pai, fazia relatos de hóquei em patins na co­zinha, com as molas da roupa, e ela gritava: «Ó Carlos, cala-te um bocadinho.»

A Loucura foi o primeiro fado que soube de cor. Mas ainda se lembra dos primeiros refrões que cantou, sem ser um fado de cor?
_Cantei vários géneros de música antes do fado. Música brasilei­ra, francesa, italiana. E o meu Sinatra, sempre presente desde os 12 anos, sempre.

Recorda-se ainda da primeira vez que cantou em público?
_Tinha para aí dois fados de reportório ou três. Cantei nas noivas de Santo António, no antigo Cinema Monumental. O grande ídolo era o António Calvário, e as pessoas passavam por mim como se fosse um cão rafeiro, sabiam lá quem eu era, as miúdas agarravam-se era ao Calvário aos gritos. E então lá cantei e as pessoas gostaram.

Sabe-se muito pouco da sua infância…
_É uma infância do filho único, com pais… desavindos. A minha mãe era uma pessoa muito difícil e o meu pai era loucamente apaixona­do por ela. Mãe ausente, porque fazia tournées ao Brasil, a África. Mas muito acarinhado. Protegido. Pelo pai, pelos tios, onde passava fins de semana, pelos avós, pais da minha mãe, onde ia nos outros fins de semana. Fiz a escola com a D. Olímpia, a minha professora, na Rua Poço dos Negros. Gostava muito de ler. A culpa foi do meu pai, porque me lia o jornal antes de eu saber ler.

O seu pai era livreiro antes de ser dono de um restaurante?
_ A vida dele alterou-se toda com a minha mãe, perdeu a cabeça, ela meteu-o nos fados, foi uma loucura, uma paixão. Eu fiz a terceira classe, a quarta classe e a admissão ao liceu no mesmo ano. E entrei no Liceu Passos Manuel com nove anos.

Precoce?
_ Sim. Devia ser aos dez ou aos onze. Muito precoce. Depois pas­sei para o Liceu Passos Manuel. Tudo no mesmo trajeto: morava no bairro da Bica, morei lá até me casar, na rua do elevador, na Rua da Bi­ca Duarte Belo, n.º 3, 1.º. E ia a pé para a escola.

Se tivesse de escolher três momentos da sua infância, quais seriam?
_ A minha primeira ida à Caparica, por exemplo, o deslumbramen­to que senti. Tinha para aí seis, sete anos. Era a melhor praia da Europa. Nós tivemos o cuidado de dar cabo dela, à nossa maneira triste, a das tais elites. Lembro-me sempre com muita saudade de brincar no meu bairro com os miúdos da minha idade, fazíamos os skates com tábuas de madeira pregadas umas às outras, passá­vamos sabão por baixo e descíamos a Travessa do Cabral com um a avisar quando vinha o elevador. Outro, de malandrice, com o se­nhor Artur, o padeiro. Quando a minha mãe e o meu pai não esta­vam ficava em casa sozinho. Mas tinha uma janela em que, se al­guém me ajudasse a descer, conseguia ir para a rua. Então o senhor Artur vinha-me buscar e ia para a rua brincar. E depois chegava a uma determinada hora e ele upa, lá para dentro. Quando os meus pais chegavam eu estava a dormir e não sabiam de nada.

Sabe-se quase tudo sobre a sua mãe. E sobre o seu pai?
_Era um homem muito bom. Superiormente inteligente. Teve um funeral como uma figura pública. Milhares de pessoas. Não podia ver um amigo em dificuldade. Emprestava-lhe dinheiro, fazendo–lhe falta. Tinha muita vaidade no filho… mas era de uma exigência!…

Como é que os seus pais conseguem pagar um dos melhores colégios da Suíça, para onde o mandaram estudar?
_Isso foi uma loucura!

Mas queria ir?
_A coisa foi muito bem posta pelo meu pai e ele acertou em cheio. Disse-lhe que queria fazer Direito e ele disse-me: «Não vou ter tem­po para isso. Gostava que fosses para o colégio onde esteve o teu pri­mo», o filho do dono da livraria luso-espanhola no Chiado. Um colé­gio na Suíça, fantástico, custava uma fortuna, um dos melhores do mundo. Os italianos e os alemães do pós-guerra faziam ali a passa­gem à faculdade. E para nós era maravilhoso, porque havia os outros alunos que iam aprender línguas. Tinha professores fantásticos. Es­tou-me a lembrar da fragrância da professora de Francês, que tinha um cheiro a Chanel, uma gola finíssima, e que nos habitou a gostar de França. O professor de alemão era um padre que era um gozão, todos nós tínhamos alcunhas. Era um homem de uma dicção exemplar.

Os portugueses eram bem tratados lá?
_Muito bem tratados. Nós e os persas éramos os melhores alunos em línguas, porque somos os que temos esta capacidade de assimilar melhor… O que os espanhóis não têm.

Como é que se sentiu lá sozinho, um menino mimado?
_Com os colegas vivemos muito bem. Eram muito austeros na pontua­lidade, era um colégio alemão na Suíça alemã, não é brinca­deira! Em St. Gallen, a 60 e tal quilómetros de Zurique. Tenho os meus diplomas, guardo-os. Tive boas notas porque gostei muito de aprender.

Sempre foi bom aluno?
_Senti-me muito cativado pela musicalidade das línguas. Se estiver dois dias em Itália estou a falar como um italiano. Na Alemanha de­moro mais, uma semana até recuperar. Mas depois entro. Espanhol e francês falo frequentemente. Inglês é a língua que gosto menos.

E não pensou mandar para lá os seu filhos?
_Não. A minha filha muito cedo quis fazer História de Arte. O meu filho do meio, o Becas, nem pensar ir para o estrangeiro. E o Gil que­ria música, foi para os Estados Unidos.

Essa ida para fora foi também forma de sair debaixo da asa dos pais?
_Não, foi uma decisão que o meu pai me pediu para tomar. Depois, a seguir saí para a Suíça francesa, onde tirei o curso de Hotelaria. Aos 20 anos estava pronto para a vida, diplomado. Hoje seria um doutor, essas coisas todas tinham equivalências.

Ganhámos um fadista e perdemos um grande gestor?
_Não sei se teria sido um grande gestor. Não era mau, tomei bem conta da minha casa de fados. Mas depois percebi, com a vida, que um artista bom gestor é complexo.

Era um jovem rebelde, boémio?
_Boémio sim, rebelde não. Muito boémio. Já casado! Telefonava pa­ra casa para a minha mulher às quatro da manhã e dizia-lhe «anda para aqui, está giríssima a noite». E ela metia-se no carro e ia ter co­migo, ficávamos até às sete da manhã. Depois ia a correr para casa, acordava os filhos para irem para a escola. Muito boémia. Ainda sou, mas de outra forma. Não bebo álcool, praticamente só bebo vinho à refeição, sou um chato. Estou num serão, está toda a gente a beber álcool e eu a beber água. Mas saboreio aquilo muito bem.

Chegou a pensar noutra carreira?
_Não. Era esta que estava definida, mas foi interrompida pela morte do meu pai. Fiquei a tomar conta da casa de fados. Aí o artista foi surgindo e sedimentou-se.

A casa dos seus pais era também palco das reuniões de intelectuais e de gente da cultura. Isso também o marcou?
_Bastante. Conheci a nata do jornalismo. Os vossos mestres, grandes mestres. O Félix Correia, homem do Diário de Lisboa, um salazarista convicto, que não tinha um tostão, era uma questão de convicção, não de encher os bolsos. O Dr. Tavares da Silva, que inventou os cinco violinos, brilhante. O velho Vítor Santos de A Bola, encantador. O Nuno Ferrari, um repórter fotográfico extraordinário!

Esse era o momento em que a Lisboa boémia, fadista, do futebol e até de Fátima existia. Esse país já não existe?
_Existe de outra forma. Hoje o fado já não nos é impingido. Ouvia–se fado de manhã, à tarde e à noite na rádio, hoje não. O futebol, nem discuto, porque se tornou uma indústria inflamante. O que se passou em termos de televisões em relação ao Campeonato do Mundo de futebol no Brasil foi uma vergonha. 14 horas por dia de futebol e de cinco em cinco minutos a dizerem que tínhamos o melhor jogador do mundo?! Uma coisa muito terceiro mundista. E não oiço falar do fundamental, que são os grandes negócios escuros da FIFA. E eu gosto de futebol!

E Fátima? Como está a sua relação com a religião?
_Sou crente mas só fui uma vez a Fátima. Com uma amiga brasileira, casada com o meu amigo Ivan Lins, que já ganhou vários Grammy e é aquela pessoa simples. Queríamos um milagre e lá fui eu com ela a Fátima. Foi a única vez. E foi difícil encontrar um padre que me benzesse a vela. Não estava a ser fácil, mas consegui.

A morte repentina do seu pai, o facto de ter ficado à frente do restaurante com a sua mãe, tudo isso fê-lo crescer depressa demais?
_É verdade. Para ser objetivo, e grato a quem devo ser, preciso dizer que quando o meu pai morreu devia bastante dinheiro. Tive de ge­rir a casa de fados de uma forma especialíssima. O objetivo era fa­lar com os fornecedores e credores e dizer: «Isto é tudo para pagar. Sou jovem mas quero pagar.» Havia uma casa de bebidas chamada JA da Costa Pina, que tinha um senhor à frente, já com muita idade, e o filho e o genro eram os braços direitos. Chamou-me ao escritório, olhou para o filho e para o genro, e disse-lhes: «Estão a ver este miú­do? Eu aposto nele. Forneçam-lhe as bebidas, paga quando puder.» Tive bebidas sem pensar em pagá-las. Fiquei sossegado, paguei a toda a gente e depois paguei-lhes. Este apoio não foi pouca coisa.

O seu nascimento foi até notícia nos jornais. O peso da herança da sua mãe foi muito pesado, foi difícil demarcar-se?
_Ao princípio sim, porque as pessoas da geração dela eram um bo­cadinho para o cruel. Diziam: «Tu cantas bem, miúdo. Mas a tua mãe…» Ouvia isso com respeito e ternura. Começaram a perceber que eu ia por outro caminho e respeitaram-me. Trouxe uma geração comigo, começou a ir gente nova para o fado. Quando vê os setentões a conversar comigo não pense que eles começaram a ser meus fãs há cinco anos, vêm da juventude!

Foi difícil lidar com a doença da sua mãe?
_Muito difícil. Os últimos sete anos com Alzheimer foram absoluta­mente dramáticos. É a doença mais humilhante que conheço. Mas ninguém a viu, a não ser os que cuidavam dela. Quis que guardassem dela aquela imagem que ela tinha, de imperatriz.

Como é que é a sua relação com as fãs, ou como é que foi sempre?
_Normalzinha da silva.

A sua mulher era uma fã e casou com ela.
_A essa, atirei-me de cabeça. Ela veio conhecer o fadista e eu atirei-me. Era um tempo que era ao contrário, os homens é que se atira­vam. Fui muito assediado, obviamente, qual é o artista que não é? Elas assediavam-me mesmo à frente da minha mulher.

E ela, lidava bem com isso?
_Sim, não dava parte de fraca. Ficava a fumar, duquesa, por cima do ombro. Muito bem. Só filosofia. Compreendia. «Olha, com quem me casei. Mas pronto, agora já está, já não posso recuar.»

Nunca considerou um sacrilégio fazer coisas novas no fado, sempre acrescentou qualquer coisa. Canoas do Tejo, por exemplo, tem uma orquestra, não tem guitarra, não tem viola. Foi fácil?
_Foi fácil porque foi feito com gosto, com prazer. Não foi a armar ao inovador, eram coisas sentidas. Tenho a minha cabeça cheia de mú­sica, sempre, a toda a hora. Estou-me a ouvir cantar em fundo, eu que não gosto de me ouvir cantar, mas tudo isto provoca uma agitação musical. Sempre gostei de música e é natural que depois essa preo­cupação com o fado passe por aí. É bom lembrar que tenho cantado com os melhores músicos desta terra.

Maria João Pires, Sassetti…
_Carlos Bica, o maestro Joaquim Luís Gomes, grande músico, Thilo Krassman, que foi meu diretor musical durante anos!

Tem algum projeto na cabeça?
_Tenho. Mas é pequeno. Os discos deixaram de se vender. Vou gra­var à peça! Tenho um fado escrito há dois ou três anos pelo Vasco Graça Moura, uma coisa com uma graça! E tenho um fado que me foi entregue há uns dois meses pelo meu amigo Júlio Pomar. Quero ver se lhes descubro a música, tem de ser corrida, e vou gravar à pe­ça. Agora não vale a pena estar a gravar discos. Toda a gente grava à peça e depois põe naquelas coisas, o Spotify, não percebo nada disso. Já disse à minha gravadora: «Daqui por diante vou gravar à peça.» Eu dantes gravava singles!

Gravou aos nove anos, aliás, numa brincadeira.
_Sim, mas quando entrei na profissão, gravava à peça, ao single. Só gravei o primeiro LP, quatro, cinco, seis anos depois de ter começado a cantar.

Foi o primeiro português a gravar um CD.
_Foi! Uma coincidência muito gira. Era oferecido com os primeiros leitores de CD que apareceram em Portugal, da Phillips.

E o fonograma, também foi o primeiro a usá-lo, aos nove anos.
_Isso foi uma gracinha.

Há algum cantor com quem gostasse de cantar?
_ Vivos, há dois, mas não é possível materializar esse sonho. Gostava muito de cantar com o Tony Bennett e com o Sting.

E uma sala?
_ Está previsto para breve cantar no Carnegie Hall, nunca cantei.

Pode-se fazer um ranking dos melhores do fado em Portugal?
_Mas não sou eu que o vou fazer. Posso-lhe fazer o passado, o presen­te não, posso melindrar as pessoas. Claro que toda a gente sabe que tenho uma paixão assolapada pelo Camané e pela Mariza, é público. Mas depois não faço.

Já alguma vez pensou mesmo deixar de cantar?
_ Já. E tenho a família alerta. Eles não vão deixar que eu pise um palco a fazer má figura. E bebo tanta água, tanto chá de camomila, que tenho uma voz melhor do que tinha há trinta anos.

Mas passou por uns grandes sustos.
_ Ai Jesus, nem me fale nisso.

Aquela queda no palco, aos 50 anos…
_ E depois a seguir, as intervenções cirúrgicas ao aneurisma, o co­ração… tanta coisa. Por isso é que gosto de viver um dia de cada vez. Não há nenhuma amargura.

Acha que está preparado para isso, para deixar de cantar um dia?
_Estou. Não faz ideia o que é o meu telefone. Desde pequenas conferências que querem que eu faça, convívios, encontros, até me pedem para ir a lares, escolas, para escreverprefácios para livros, tanta coisa! E gosto de ler, de ouvir música, não vou ser aquele velho que fica feito estúpido a olhar para a televisão. Não faz o meu género.

Li numa entrevista que a primeira pergunta que faria a si próprio é porque é que ainda não se cansou da sua utopia. Porquê?
_ Cheguei à conclusão de que sempre que demos um passo em frente, passados anos, anos e anos, reparámos que era uma utopia.

NOS BASTIDORES DE UMA ENTREVISTA
A entrevista, gravada na sala onde está exposta a sua carreira de 50 anos, tinha como mote o Grammy latino que acabara de receber. Mas esse foi só o ponto de partida. Carlos do Carmo é muito mais do que o homem da cidade de Lisboa que tão bem canta. É um homem do país, com o qual está muito preocupado, o que revela a sua faceta mais política e as suas preocupações de cidadania. E também um homem do mundo, com a visão de quem estudou línguas (fala seis!) e gestão na Suíça e cantou em todos os cantos do globo. A vida dele é o presente, a de alguém que nunca será um reformado comum, cuja viagem ao passado é uma lição para o futuro. Eternamente inquieto. Que acredita que a mudança está nos «putos»!