Beleza negra

William Hacker

Fotografam com Kate Moss, desfilam para a Victoria’s Secret, protagonizam campanhas. São todos negros e dividem-se entre Nova Iorque, Lisboa e África. São supermodelos internacionais e estão no epicentro da discussão sobre o racismo na moda.

A Semana da Moda de Nova Iorque é o único momento em que é possível reunir os modelos luso-africanos que vivem e trabalham nesta cidade. E, ao mesmo tempo, a altura em que essa tarefa se torna impossível. Os irmãos Armando e Fernando Cabral e o amigo Cláudio Monteiro aterraram em Manhattan, vindos de Paris, e não pararam durante vários dias. Quando os seus desfiles começavam a abrandar, reuniram-se no Central Park onde esperavam encontrar-se com Sharam Diniz e Maria Borges. Mas, por essa hora, Maria vestia um conjunto saia-casaco Carolina Herrera, no desfile em que foi considerada a melhor modelo negra. E Sharam já voava por cima das suas cabeças, a caminho da Semana de Moda de Londres.

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Nos últimos meses, estes cinco modelos, que têm em comum o facto de serem negros e terem um pé em Portugal e outro em África, tomaram a moda mundial de assalto. Cláudio Monteiro, depois de ter sido modelo exclusivo da Calvin Klein em Milão, protagonizou as campanhas da Kenzo e da Kenneth Cole. Armando Cabral, luso-guineense, apesar de se concentrar na sua marca de sapatos – que já o levou a ser capa da Notícias Magazine – continua a ser a cara da marca J. Crew. Fernando Cabral, desde que partilhou com o irmão Armando uma campanha da H&M, tornou-se o único português na lista dos cinquenta melhores modelos masculinos do site models.com. A luso-angolana Maria Borges foi considerada uma das dez modelos a acompanhar nesta estação e dominou as passerelles de Nova Iorque, Londres, Paris e Milão. Igualmente angolana, Sharam Diniz desfilou para a Victoria”s Secret e e está nas campanhas da H&M e da Clinique. Para todos, o futuro promete ser extraordinário.

É no mínimo interessante verificar que os modelos portugueses atuais com mais sucesso no mundo internacional da moda são quase todos negros, luso-africanos. E, no entanto, todos eles estão também no epicentro de uma discussão quente e atual, sobre se ainda restará algum tipo de racismo neste meio. Em Portugal, país onde alguns nasceram, por onde todos passaram e onde todos vivem parte do tempo, no final do ano passado, os Fashion Awards ignoraram–nos. E mesmo internacionalmente, a última ronda de semanas da moda (em Nova Iorque, Londres, Milão e Paris) teve 6,5 por cento de modelos negros e 88 por cento de brancos.

Armando Cabral é uma figura tutelar do grupo. Aos 31 anos, tem uma marca de sapatos com o seu nome que, no ano passado, vendeu mais de cinco mil pares em 14 países e é elogiada nas páginas da GQ ou do The New York Times. Ainda assim, continua a trabalhar como modelo e, dias depois da Semana de Moda de Nova Iorque, viajou para Zanzibar onde, uma vez mais, fotografou a campanha da J. Crew, a marca preferida de Michele Obama. O português, filho de guineenses imigrantes na Amadora, entrou na moda em 2001. Num momento difícil para os modelos negros, trabalhou para a Louis Vuitton, Calvin Klein, Hugo Boss, Dior, Benetton e H&M. «Lembro-me de estar em Paris e de ser o único negro a trabalhar. Via outros nos castings, mas depois não os via nos desfiles», lembra.

Uma regressão cultural

Depois de anos a celebrar a diversidade, a moda, indústria de humores, entrava numa nova fase. Três décadas antes, os anos 1970 tinham marcado uma primeira celebração da beleza negra. Em agosto de 1974, Beverly Johnson tornou-se a primeira negra na capa da Vogue e, ao longo dessa década, o mundo aprendeu os nomes de Beverly Johnson, Pat Cleveland e Iman. No final dos anos 1980, Naomi Campbell tornou-se a referência de uma segunda vaga, que se prolongou na década de 1990, e onde ganharam notoriedade Tyra Banks, Veronica Webb ou Alek Wek. Por essa altura, a moda também começou a celebrar outras geografias, com a ascensão de modelos brasileiras e asiáticas, e o fenómeno chegou aos homens, com Tyson Beckford a assinar, em 1995, um contrato para ser a cara da Ralph Lauren, a mais americana das marcas americanas. O mundo foi convidado a apreciar diferentes ideais de beleza. Houve quem celebrasse uma indústria pós-racial. Mas, como viria a perceber-se, identificar neste movimento uma derrota do preconceito era ignorar o piso flutuante em que estes modelos caminhavam. No início dos anos 2000, quando Armando chegou ao mundo da moda, tudo era diferente.

Nessa altura, ele instalou-se em Londres para estudar Gestão. Com um curso de modelo, que fizera influenciado por uma irmã manequim, decidiu visitar uma agência. Foi recusado três vezes. À quarta tentativa, depois de investir num book, foi aceite. Meses depois estava a trabalhar para Alexander McQueen. Construiu a sua carreira no estrangeiro, o que explica que seja relativamente desconhecido em Portugal. «Só fiz a ModaLisboa muitos anos depois de começar, quando já tinha uma carreira internacional», diz.

No início dos anos 2000, a tendência eram os modelos do antigo bloco soviético. Os modelos queriam-se muito magros, brancos e louros – personagens anónimas. Os responsáveis garantiam que, depois da era das top models, em que os manequins eram as estrelas, o objetivo era recolocar a roupa no centro das atenções. «Regredimos. Frequentemente sento-me num desfile e não vejo um único modelo negro. Não conseguem encontrar algumas raparigas negras?», perguntou o mítico editor da Vogue André Leon Talley numa entrevista à revista Essence. Naomi Campbell falou do mesmo problema: «Há, definitivamente, lugar para mais modelos negros, mas tem sido feito um esforço? [A situação] estava a melhorar, agora regrediu.»

Nessa altura, a angolana Sharam Diniz entrava na adolescência e viajava com a mãe (hospedeira de bordo na Transportadora Aérea Angolana, TAAG) para o Rio de Janeiro, Paris e Londres, onde era abordada por estranhos que perguntavam se queria ser modelo. «A minha mãe respondia que não, dizia que eu era muito nova. Nessa altura, também não tinha muito interesse em moda», lembra. «O meu sonho era ser atriz.»

Alguns anos depois, no entanto, Sharam participou num concurso de manequins em Angola, venceu e começou a trabalhar. Em Angola e em Portugal. «O meu pai não queria, mas fizemos um acordo: se baixasse as notas, parava. Os meus pais associavam a moda a deixar de estudar e isso assustava-os.» Os receios acabaram por desaparecer: no final de maio, a mãe de Sharam cumpriu a viagem de oito horas entre Luanda e Lisboa para aplaudir a filha que subiu ao palco do Coliseu dos Recreios e aceitou o Globo de Ouro da SIC para Melhor Modelo Feminino. Com 18 anos, Sharam mudou-se para Leeds, em Inglaterra, para estudar Gestão e Produção de Eventos, e começou a trabalhar, fazendo desfiles na Semana de Moda de Londres e na ModaLisboa. Venceu a edição portuguesa do concurso Super Model of the World e representou o país na final mundial do concurso, no Brasil, não tendo ficado, porém, entre as finalistas. Em 2011, foi a Nova Iorque «testar o mercado» por uma semana e acabou por ficar todo o verão. «Correu muito bem, mas a agência não me mandava para os clientes mais importantes. Dizia-me: “Para veres esses clientes, tens de perder peso.”»

Alguns meses depois, a sua agência em Lisboa, a L’Agence, aconselhou-a a interromper os estudos por um ano para investir na carreira. Sharam decidiu arriscar. No início do ano passado, a modelo, que tem 1,78 metros, chegou a Nova Iorque com 55 quilos, menos cinco do que na visita anterior, e a sua carreira descolou. Em pouco tempo, estava a trabalhar para a BCBG, Hervé Léger e Anne Klein, era fotografada pelo ator James Franco para a campanha da 7 for all Mankind e trabalhava, pela primeira vez, com a famosa marca de lingerie Victoria”s Secret. «Fazer esse desfile era um dos meus sonhos e comecei logo a trabalhar para isso», lembra a modelo. «Estava sempre a perguntar na agência quando era o casting.» A marca de lingerie tem os seus anjos – como a brasileira Adriana Lima ou a sul-africana Candice Swanepoel, com quem tem contratos fixos e que desfilam obrigatoriamente -, mas depois realiza um casting anual para escolher todas as outras modelos.

Sharam começou a preparar-se vários meses antes, treinando seis vezes por semana. «Mas estava a ficar muito musculada e a minha agente aconselhou-me a reduzir», diz. Quando chegou o dia da audição, sentia-se preparada. «Acompanho o desfile e os castings desde 2005. Vi os castings, no YouTube, mais de trinta vezes. Sabia o que queriam e o que não queriam. Dizem sempre que uma modelo pode ter um rosto muito bonito e um corpo fantástico que, se não tiver personalidade, não passa. A minha preocupação era essa: sou extrovertida normalmente, mas sentia a responsabilidade de o mostrar.»

Sharam entrou na sala «muito positiva, com muita esperança». Tinha imaginado aquele momento centenas de vezes: quatro rostos à sua frente, ela de biquíni e com trinta segundos para conquistar um lugar no desfile mais cobiçado por todas as manequins. «Assim que entrei, percebi que eram outras pessoas», lembra. «Não eram as pessoas que tinha visto no YouTube.» Sharam controlou-se. Dominou os nervos, sorriu e desfilou. «Três deles estavam a conversar, a ver fotografias e papéis, mal olharam para mim. Só o diretor de casting é que falou comigo.» No final, telefonou para a sua agente. «Já estava de lágrimas nos olhos e ela dizia: “Não chores que não vale a pena. Se não fizeres este ano, tens outros anos para tentar.”»

Dias depois, foi chamada para um segundo casting. Apesar da indiferença dos representantes da marca, a luso-angolana tinha impressionado. O segundo casting serviu apenas para confirmar a sua presença. Semanas depois, estava nas provas do desfile quando uma fotografia do seu fato surgiu nas redes sociais. «Fiquei triste. Adorava o fato e tiveram de o trocar», diz. «Mas disseram-me que o outro teria asas e esqueci-o logo. Uau, primeiro show, logo com asas, não podia ser melhor!» No ensaio, descobriu ainda que ia desfilar ao som da música Beauty and a Beat, de Justin Bieber, o maior ídolo pop da atualidade.

Todos os anos, o desfile é visto por cerca de dez milhões de pessoas na televisão. O que esse público não sabe é que são realizados dois desfiles no mesmo dia. Os melhores momentos são depois escolhidos e montados como um único evento. O primeiro desfile correu bem para Sharam, mas não foi memorável. Da segunda vez, tudo mudou. A modelo entrou em palco quando o refrão da música arrancava. «Senti um compasso da música e dancei. Tinha tudo que ver comigo. Era eu. Era a Sharam contente, divertida. Não foi pensado. Foi natural. Saiu.» Talvez a essa energia musical não fosse alheia a sua origem angolana.

Nesse momento, Justin Bieber virou-se e descobriu-a. Olhou-a de cima a baixo, ajeitou com as duas mãos o colete branco. Sharam aproximou-se e os dois ensaiaram uns passos de dança. Ela devolveu-lhe um olhar, deu uma volta à sua frente e acelerou até ao fim da passerelle, onde pousou a mão na anca e rematou tudo com um enorme sorriso. Um momento de ouro. É por momentos como este que a Victoria”s Secret investe milhões num extravagante desfile anual: instantes transmitidos pela televisão, publicados nas revistas e revistos na internet em que o ídolo de milhões de adolescentes deseja a modelo que veste a lingerie da marca a poucas semanas do Natal. Fora do palco, os fotógrafos registaram o momento. Horas depois, as imagens foram libertadas para todo o mundo pelas agências de notícias. Portugal, que até então praticamente desconhecia a manequim, amanheceu com títulos como este: «Sharam Diniz é a primeira portuguesa a desfilar para a Victoria”s Secret». Portuguesa, era assim que estava escrito nos títulos.

Mercado de oportunidades

Até ser nomeado para o Globo de Ouro da SIC de Melhor Modelo Masculino o luso-guineense Fernando Cabral também era quase desconhecido em Portugal. E, no entanto, aos 25 anos, Fernando é o único manequim português na lista dos cinquenta melhores modelos do mundo do site models.com, já fez campanhas para a H&M e a Benetton, desfilou para a Hugo Boss e a Louis Vuitton e foi fotografado por Nick Night ao lado da top model Kate Moss. Apesar do sucesso internacional, não foi nomeado para os Fashion Awards, os prémios de moda entregues pela Fashion TV portuguesa em novembro do ano passado. A decisão do júri motivou acusações de racismo dentro e fora da indústria. Numa crónica da Revista 2, do jornal Público, o músico Kalaf Angelo disse mesmo que «Fernando é negro, condição de quase-invisibilidade nesta sociedade» e lançou a questão: «Será Portugal um país racista?» «Acredito que não o será mais do que outros países», defendeu o membro dos Buraka Som Sistema, para perguntar logo de seguida: «Como olhar para a história do Velho Continente e da sua relação com a África negra sem acordar sentimentos de culpa e toda a negação que geralmente associamos ao embaraço e que se manifesta com atos defensivos e justificações naïves?»

Fernando, que perdeu este ano o Globo de Ouro para Gonçalo Oliveira, desvaloriza a questão. «Não são os prémios que dominam a minha carreira», diz, mas não nega a existência de preconceito. «Acho que há um pouco de racismo, mas não é só na moda nem só em Portugal. [Entre os jurados dos prémios] acho que há, sobretudo, desconhecimento sobre os modelos e o trabalho que estão a fazer no estrangeiro.» O irmão Armando concorda que «há responsáveis pela moda em Portugal que não sabem o que se passa fora do país, o que é muito grave». Mas é mais crítico do que Fernando. «Porque é que alguém, que é reconhecido como um dos melhores internacionalmente, é quase ignorado no seu país?» Para o modelo, mais velho, «há em Portugal uma questão de preconceito que ainda não está resolvida».

Cláudio Monteiro, 25 anos, nasceu em Portugal e é filho de pais cabo-verdianos. Saiu do país em 2009, quando já só trabalhava pontualmente em Portugal, fazendo a ModaLisboa e alguns anúncios de televisão, mas sentia que Nova Iorque guardava algo mais para si. «Já há imenso tempo que pedia à minha agência para tentar, mas eles nunca me davam uma resposta concreta», lembra. «Sabia que nos EUA eles gostam de modelos mais masculinos, com um visual mais forte. É um mercado diferente do europeu, que funciona para mim.» Como quase todos os modelos portugueses com sucesso internacional, o passo de sair do país teve de ser tomado por ele próprio. «Foi o que aconteceu com o Luís Borges: decidiu vir e tentar. Depois voltou e foi considerado dos melhores. A Sara [Sampaio] a mesma coisa. Com os gémeos [Jonathan e Kevin Sampaio] a mesma coisa. Todos saíram do país por sua vontade e sem grande apoio.»

Cláudio trabalhou vários meses nos Correios de Portugal para poupar dinheiro. Comprou um bilhete de ida para Nova Iorque. «Vim às minhas custas», admite. «Completamente às cegas.» Assim que chegou, telefonou para Armando Cabral, com quem já tinha jogado futebol em Lisboa. «Procurei-o e pedi-lhe ajuda. Foi ele quem me apresentou à cidade», lembra. «Disse-me que, se queria ser modelo, tinha de dar o meu máximo e de ter muita paciência.»

Armando estava certo. «Os trabalhos não apareceram de repente», conta Cláudio. «Mas no último ano e meio as coisas começaram mesmo a acontecer.» Desde que chegou, o português desfilou para Birkenberg, Calvin Klein, John Varvatos, Moschino, Gant, Michael Bastian, Banana Republic, J. Crew e fez campanhas para a Converse, MTV, Kenzo, Kenneth Cole e Macy”s.

Não é uma coincidência que Cláudio e os outros modelos escolham Nova Iorque para viver: os Estados Unidos são reconhecidos como o melhor local para modelos negros. O modelo explica que «o mercado é maior, há mais diversidade e mais clientes. A influência negra é muito grande e os negros consomem muito». Sharam Diniz concorda. «Cada manequim tem o seu mercado. Uma manequim asiática, por exemplo, vende mais na Europa do que nos Estados Unidos. Acho que os manequins negros crescem muito mais, e muito mais depressa, nos Estados Unidos.»

Quando Cláudio ouve um não, gosta de acreditar que nada tem que ver com a cor da sua pele. «Prefiro pensar que não tenho o perfil que o cliente procura e por isso não me escolhem.» Sharam Diniz tem uma perspetiva diferente. Diz que, «apesar de Nova Iorque ser um mercado com muito mais oportunidades, ainda há episódios de racismo». E essas atitudes nem são escondidas: na Semana de Moda, há marcas que dizem que não estão interessadas em manequins negros ou asiáticos nos seus desfiles. «Em conversas com a minha agência, perguntava porque não ia a este casting ou àquele e eles explicaram: “Ah, esse designer não usa negros.”»

Uma modelo nórdica, por exemplo, não ouve esses comentários, garantem. Sharam diz que «uma loura vende em qualquer parte do mundo» e dá o exemplo de Cara Delevingne, uma inglesa que, depois de se tornar exclusiva da Burberry, tem dominado as semanas de moda nas duas últimas temporadas, apesar de ter 1,71 metros. «Uma modelo negra não conseguia fazer o mesmo percurso», diz. «Os manequins negros têm de ser quase perfeitos. Por sermos negros, já damos nas vistas à partida, quer pelo lado positivo quer pelo lado negativo.» A luso-angolana diz que se aparece uma loura e uma negra num casting, ambas com manchas nas pernas, a resposta do diretor de casting será diferente. «A negra, provavelmente, não passa, mas a branca sim. Porque é mais fácil vender a sua imagem, porque as pessoas preferem o caminho mais fácil», explica.

Maria Borges, 21 anos, recorda uma prova que fez, em Abril, para a Calvin Klein. Quando os responsáveis da marca perceberam que as mangas da camisa ficavam demasiado curtas na angolana, a costureira disse: “Podemos aumentá-las um pouco.” Mas o diretor de casting respondeu: “Não sei…” Antes de Maria, o mesmo tinha acontecido com uma manequim ruiva. «Mais tarde, não fui confirmada, mas acho que a ruiva conseguiu o trabalho.»

Uma questão de milhões

Nos últimos anos, Armando Cabral passou para o outro lado. Agora que tem uma marca, é ele quem decide que modelos representam a sua linha de sapatos. «Quando estou a fazer o casting, não penso em nenhuma caraterística específica», explica. «Faço uma escolha, mas não tem nada que ver com a cor da pele ou dos olhos. Decido se aquela pessoa faz sentido para mim e para a minha marca.»

Estes profissionais são parte de uma indústria que, como todas as outras, procura o lucro, não apenas a expressão de uma visão artística – e isso ajuda a explicar por que motivo os modelos negros continuam a ser uma exceção. Na última década, várias casas de moda foram compradas por multinacionais. Integradas nessas empresas, a criatividade dos diretores artísticos tem muitas vezes de se submeter à vontade dos diretores financeiros e de marketing. Embora discutível, a opinião destes especialistas é que a identificação dos consumidores se torna mais difícil quando o modelo tem uma etnia diferente. Além disso, vários editores americanos têm revelado que as suas revistas vendem menos quando optam por um negro na capa.

Mesmo que editores e gestores estejam certos, a situação está a mudar. Com o desenvolvimento económico de países como Angola e Brasil, as oportunidades para os modelos negros estão a multiplicar–se. Sharam Diniz e Maria Borges são hoje capa de revistas femininas angolanas, dirigidas a um público com poder de compra, informado e todos os dias mais numeroso, que não existia na geração das suas mães. «Não havia uma única revista feminina angolana quando a minha mãe estava a crescer», confirma Sharam.

Nos últimos dias de abril, Maria Borges perdeu algumas oportunidades em Nova Iorque para fotografar uma campanha angolana. «Podia estar aqui a fazer outra coisa, que talvez fosse melhor para mim, mas fui fotografar em Lisboa», diz. A modelo será o rosto de um novo centro comercial de Luanda. Oportunidades como esta são cada vez mais comuns. «Cada vez há mais eventos, desfiles e, sempre que houver um convite, vou estar disponível.»

Nos Estados Unidos, as afro-americanas gastam, em média, mais dinheiro em produtos de beleza do que outros grupos étnicos – cerca de 7,5 mil milhões de dólares por ano, segundo um estudo da consultora Packaged Facts, de 2009. Em produtos para o cabelo, por exemplo, gastam oitenta por cento mais dinheiro do que as outras mulheres. Os empresários americanos detetaram esta oportunidade de negócio há cerca de vinte anos: logo em 1993, Veronica Webb tornou–se a primeira negra a assinar um contrato exclusivo com uma empresa de cosmética, a Revlon. Desde essa altura, este segmento de mercado tem sido explorado sem interrupção, com o desenvolvimento de novos produtos, a abertura de lojas especializadas e a presença, cada vez maior, nas grandes superfícies comerciais.

A primeira vez que Maria Borges ouviu um não foi quando participou no concurso da Elite em Angola. Roberta Narciso, que também tem uma carreira internacional, venceu a competição e Maria acreditou que o seu sonho de menina terminava ali. «Fiquei triste. Achei que tinha perdido a minha hipótese de ser modelo», lembra. «Pensei: “Vou continuar na escola, como a minha irmã diz para fazer.”» Umas semanas depois, no entanto, recebeu um convite de Karina Barbosa. A dona da Step Models, a maior agência de Angola, queria trabalhar com ela. «Mas eu não sabia andar de saltos», lembra. «Disseram-me para aprender.»

Maria comprou umas sandálias altas. No quintal da irmã, com quem vivia em Luanda, começou a treinar, para trás e para a frente, de um muro ao outro, horas seguidas, até, por fim, aprender a equilibrar 180 centímetros nuns saltos agulha.

Em pouco tempo, estava a desfilar na Moda Luanda e a fotografar editoriais. No final de 2011, arranjou uma agência em Lisboa e marcou presença no Portugal Fashion. Há dois anos foi modelo exclusiva da Givenchy. A luxuosa marca francesa pagou-lhe para, nas semanas de moda de Milão, Paris e Nova Iorque, apenas fazer o seu desfile. Meses depois, a sua agência enviou-a para os Estados Unidos. «Mandaram-me para vários castings, mas não eram as marcas top. Fiz logo 17 desfiles na primeira experiência em Nova Iorque.» Foi nessa altura que tatuou no braço «step by step» (passo a passo).

Nas semanas da moda do início deste ano, desfilou para 37 marcas. Em Nova Iorque, a primeira da temporada, foi considerada a melhor modelo negra. Atravessou depois o Atlântico e aterrou em Londres, onde nem precisou de fazer o casting para Tom Ford – o estilista escolheu-a assim que viu a sua fotografia. Da cidade inglesa, partiu para Paris e depois para Milão. No final, o site models.com colocou-a na lista das dez novas promessas. «Parece que fui voando. Não acredito que isto está tudo a acontecer.»

Apesar da surpresa, a angolana sabe perfeitamente como tudo aconteceu. «Uma modelo negra só chama a atenção se tiver algo só dela, uma caraterística que a distinga, que faça as pessoas dizerem: uau, a única que tem este perfil é ela.» No seu caso, acredita que é o corpo. «Sou mesmo muito magra. Não há modelos com o meu perfil. Sou sempre mais alta do que as outras e elas têm mais rabo ou mais ancas do que eu.» Depois, é uma questão de atitude. «Vou sempre muito confiante para os castings. Acredito em mim e que tenho potencial. Penso: se uma top model pode, uma new face também pode. Estou aqui porque mereço e vou fazer este show.» A manequim sabe que não pode ser de outra forma. «Para seres escolhida, o cliente tem de ter a certeza de que te quer. Se ele tiver dúvidas, vai escolher a loura.» Sharam Diniz acredita que é tudo uma questão de tempo. «Quando estiveres no top qualquer estilista vai usar-te, independentemente de seres negra ou não. Se apareceres na Vogue, ou se fizeres uma campanha explosiva, todos os designers vão querer-te.» Neste momento, todos querem Chanel Iman, Joan Smalls e Jourdan Dunn. São estas três modelos que Maria e Sharam apontam como referências.

Joan Smalls é, no ranking do models.com, a número um do mundo e foi a primeira mulher negra a aparecer numa publicidade da Chanel. E mesmo ela fala de preconceito na indústria. «Lidei com obstáculos de pessoas que achava que estavam do meu lado», disse a porto-riquenha numa entrevista. «Tive agentes que me diziam: “Só há espaço para uma rapariga de cor.”» Na mesma altura, a inglesa Jordan Dunn falou de uma maquilhadora que se recusou a fazer a sua maquilhagem porque, alegou, era branca e não sabia trabalhar com uma pela escura.

Extensões e maquilhagem próprias

Depois de algumas melhorias em 2008 – quando a Vogue americana chegou a perguntar «A moda é racista?» -, a situação piorou. A Semana da Moda de outono-inverno de Nova Iorque (a anterior, porque esta que está a decorrer é já de primavera-verão) foi a menos diversa desde que é feito este registo, com seis por cento de modelos negros (na edição anterior tinham sido 8,1 por cento). Marcas como Calvin Klein, Chanel e Celine chegaram a ter desfiles sem qualquer modelo negro (no caso da Celine, não contratam um modelo negro desde 2009). A denúncia parece, no entanto, ter resultados: a Dior, depois de várias temporadas com um casting cem por cento branco, acabou por contratar seis modelos negros para a última apresentação de alta-costura, em julho (Maria Borges foi uma das escolhidas). É com essa esperança que uma antiga modelo e agente americana, Bethann Hardison, está a organizar uma campanha nas redes sociais para denunciar os estilistas e marcas que não usem modelos negros na atual Semana da Moda de Nova Iorque, nesta semana.

Neste mundo, continuam a tolerar-se comentários que seriam inaceitáveis noutro contexto. A moda é uma indústria discriminadora. É esse o seu negócio: dizer o que se usa ou não. O perigo reside quando se colocam tendências de roupa, como os motivos florais deste verão, ao lado da preferência racial. «Toda a gente sabe que os modelos negros têm mais trabalho na primavera-verão», diz Fernando Cabral. Alegadamente, explica o modelo, porque «a cor da pele fica melhor contra as cores fortes destas estações».

William Hacker

O negócio da moda é produzir imagens inspiracionais. Vender sonhos. Essas fantasias, para serem partilhadas por milhões de pessoas, são forçosamente limitadas. «Quando fui a Lisboa, o meu booker disse: a única coisa que vamos mudar em ti é o cabelo», recorda Maria Borges. «Vais passar a usar extensões.» Maria diz que a solução não a incomoda: «O cabelo natural é bom e é lindo, mas se queres ser versátil e trabalhar tens de usar extensões. As modelos negras com cabelo liso trabalham mais.» Sharam Diniz seguiu o mesmo caminho. O cabelo encaracolado que exibe na sua primeira capa, na revista angolana Chocolate, em 2009, foi substituído por extensões de cabelo sedoso. A modelo explica que a decisão é, sobretudo, prática. «Há muitos cabeleireiros que não sabem trabalhar com o nosso cabelo natural.» Noutras alturas, os maquilhadores não têm produtos para a sua pele. «Já aconteceu usarem uma base muito clara e parecer um fantasma.» Mas Maria Borges e Sharam Diniz estão armadas para vencer nesta indústria. Maria diz que «nunca é de mais levar extensões» consigo quando vai em trabalho. Sharam Diniz vai além disso. A luso-angolana tem sempre consigo um pequeno estojo de maquilhagem com a sua base preferida, extensões de cabelo, uma marca de laca específica e umas placas de alisamento. «Por enquanto, tem de ser assim», diz. «Talvez um dia possa deixar de o fazer.»

[15-09-2013]