Assisti a um roubo e fui cúmplice

Notícias Magazine

Passei férias com gralhas. Quem leu José Eduardo Agualusa sabe, pois, que estive em Goa. A partir do segundo dia eu escolhia deitar-me com uma casuarina entre mim e o mar e, sobre ela, gralhas. As casuarinas são das minhas árvores prediletas. Falsos pinheiros, com folhas em escamas e peque-nas pinhas de sementes com asa. A pinhas caíam na areia da ilha de Luan-da, picavam-me os pés e eu fiquei-lhes eternamente grato. Não tanto pelo picar mas por tudo ter acontecido na minha infância. Para vos explicar melhor: até tenho saudades de matacanhas. As matacanhas dão comichão, mas como só me atacaram na infância lembro-me delas com ternura. Já as casuarinas nem esse porém têm. São perfeitas para me lembrar de mim. Têm um porte de mares do Sul, pedem para Hugo Pratt as desenhar acasaladas com Corto Maltese. Fui crescendo sonhando sobre a chegada delas, vindas do Pacífico, à minha cidade. Quando souber tudo sobre essa viagem tenho mais um parágrafo que me dará a entender a minha vida.

A casuarina era escolha inevitável – deitar-me e ficar com ela no enfiamento dos meus pés e esperar, um pouco mais além, que o Sol se pusesses no mar Arábico. Mas se decidi ser esse o destino de todas as tardes das minhas férias foi por causa das gralhas. Na verdade, eram as primeiras gralhas da minha vida mas reconheci-as logo: «As gralhas, lá fora, ralham umas com as outras. Arranham a noite numa algazarra áspera» (Um Estranho em Goa, José Eduardo Agualusa). No fundo, como os cucos da minha infância, que se faziam ouvir muito. Mas a eles nunca vi, ao contrário das gralhas negras que passei a ver em bando. Às vezes, elas abandonavam a casuarina ao silêncio – o que significava que partiam dela brevemente – mas quando uma se anunciava com o som cavo das suas asas longas e regressava a um ramo frágil, logo se seguia o grasnar. Este chamava as outras e a árvore enchia-se de uma sinfonia de portas velhas sem óleo nas dobradiças.

Eu achava admirável aquele chinfrim sem causa. As minhas férias foram suficientemente longas para confirmar que o pousar na casuarina não era motivado pela caça de larvas ou insetos, não as vi a debicar, e, só uma vez, uma gralha partiu com um ramo estreito e longo que, suponho, serviu para forrar o seu ninho, nos palmares. Não, a casuarina era sala de concertos ou simples falar lá da língua delas, talvez comentando alto e em direto, como eu faço aqui escrito e em diferindo, a estranheza daquele jornalista vindo de longe e tão atento a elas. As gralhas gralhavam porque lhes apetecia e não era eu, de papo para o ar, que lhes ia cobrar o despropósito. Passei a gostar delas, por mais estranho que seja um jornalista gostar de gralhas. Por uma vez considerei a minha língua injusta.

Os franceses chamam corneilles às gralhas de nuca-preta que eu vi, do mesmo nome do dramaturgo (Corneille, 1604-1684). O termo «corneliano» tem em francês, aliás, uma conotação de grandeza que me pareceu exagerada para as gralhas, até assistir a um episódio na casuarina das minhas férias. Muitos disseram que as gralhas em Goa são uma praga mas o leitor já entendeu que não é esse o meu aviso: praga  são mais os turistas russos em Goa. Barulhentos,  não no sentido de uso de um direito, como vi nas gralhas, mas com a vontade de tanque entrando em Praga. Numa tarde, um deles, que tinha escolhido também deitar-se perto da casuarina, ousou a meio de um concerto atirar-lhes uma pedra. As gralhas partiram e voltaram. Nova pedra. As gralhas não voltaram, até que o russo e a mulher se aprontaram para ir ao mar. Ela tirou o colar que trazia e lançou-o para a toalha na espreguiçadeira. O som cavo de longas asas fê-la virar mas já só foi a tempo de ver uma gralha calada – ia lá ela abrir o bico… – voando, com o troféu, para um palmar longínquo

O russo pediu-me para confirmar, junto ao gerente, a culpa do hotel. Eu dis-se que não tinha visto nada e, aliás, nem sabia que os pássaros roubavam joias. Dupla mentira: o meu álbum preferido de Tintin é As Joias de Castafiore.

[01-12-2013]