“As pessoas querem que as relações acabem bem”

A separação de Gwyneth Paltrow e Chris Martin deu brado na imprensa mundial. A atriz da dieta perfeita, do corpo perfeito, dos filhos perfeitos, da vida perfeita, anunciou que ia ter agora o divórcio perfeito: «consciously uncoupling», uma separação consciente, disse ela. Existe tal coisa? Foi esta a pergunta que nos levou ao consultório da sexóloga Marta Crawford.

O divórcio perfeito existe?
Existe. Muitas vezes faço aqui «terapia do divórcio», ou seja, pessoas que têm noção de que não querem continuar juntas, mas que­rem ficar bem e preservar a família. Muitas vezes acontece as pessoas fazerem terapia não para reabilitarem a relação, mas para conseguirem uma adequação ao novo esta­tuto enquanto pais. A preocupação é: o que podemos fazer para que as nossas mágoas e raivas não interferirem na educação dos nossos filhos? Isso já se faz há muito tempo. Aliás, o conceito de mediação familiar sur­ge exatamente dessa preocupação, embora mais virado para as questões práticas e de re­gulação do poder paternal. Em terapia, tra­balhamos o contexto, como se chegou àque­le ponto, se há possibilidade de reconciliação e, não havendo, como sair bem da relação.

Quem procura a tal «terapia de divórcio» fá-lo só quando há filhos, para saber como salvaguardá-los, ou também acontece quan­do não os tem, para uma separação serena, sem mágoas?
A maior parte das pessoas que procura terapia é para tentar uma reconciliação, nem que exista apenas um por cento de esperança, muitas vezes porque têm difi­culdade de cortar amarras ou medo de fi­car sozinhas. A procura número um é pa­ra ficar bem: estamos a pensar divorciar–nos e esta é a nossa última tentativa. Po­de acontecer isso traduzir-se num suces­so terapêutico, em que as pessoas se re­encontram e chegam à conclusão de que a relação ainda faz sentido ou pode acon­tecer perceberem que já não há pernas pa­ra andar e das duas uma: os que têm filhos preo­cupam-se com essa transição; os que não têm preocupam-se consigo próprios, porque muitas vezes são relações de mui­to tempo em que as pessoas têm hábitos relacionados com o outro e ficam um pou­co à deriva no oceano.

Para que uma relação acabe bem é preciso que exista da parte dos dois a perceção de que acabou?
Normalmente, há sempre um que es­tá mais resolvido do que o outro. Ou en­tão são situações já com um desgaste tão grande que um toma a iniciativa e o outro aproveita. Mas já me aconteceu fazer uma terapia cujo objetivo era a reconciliação e a meio um dos elementos perceber que não queria mesmo e então o que teve de ser tra­balhado no casal foi isso, como gerir, como falar com os filhos, como ajudá-los a per­ceber que a separação era dos pais e não tinha nada que ver com eles… É mais fá­cil fazer isto em terapia porque o terapeu­ta medeia a conversa. Mas quando um dos elementos do casal ainda acredita no pro­jeto a dois e é apanhado de surpresa pela situação, pode ter de pedir ajuda individual, para lidar com a sua mágoa, com a sua tris­teza e para encontrar a melhor forma de viver solteiro outra vez.

A teoria do «consciously uncoupling», de­senvolvida pela terapeuta norte-americana  Katherine Woodward Thomas e adotada por Gwyneth Paltrow assenta na ideia de que uma relação para toda a vida é anacrónica, própria dos tempos em que a esperança de vida não passava dos 30 anos. Com os 80 e tal que temos hoje pela frente teremos ne­cessariamente várias relações e devemos preparar-nos para lhes dar um final feliz. É assim? O amor tem prazo de validade?
Ainda há pouco, em consulta, falava da questão da paixão e de como esta é mais fá­cil de manter entre amantes, porque há im­possibilidades, porque cada encontro é uma conquista, porque há todo um filme que se cria à volta da relação que alimenta a paixão e faz que ela permaneça durante muito tem­po. Numa relação normal, há uma fase de paixão mais intensa que depois se transfor­ma numa relação de amor. E esta pode durar muito tempo, depende das pessoas. Nós so­mos mais do que a nossa esperança de vida. Tem que ver com cada um, com os valores in­cutidos na sociedade e com a  relação em si. No tempo dos nossos pais e avós, as pessoas aguentavam uma relação muito tempo por­que eram preparadas para as vicissitudes da vida e o divórcio era mal visto (ou, até cer­ta altura, nem sequer era uma possibilidade). A partir do momento em que este deixa de ser um estigma, as pessoas passam a estar numa relação apenas enquanto esta lhes traz benefícios e bem-estar. Sofrer para to­da a vida já não se justifica.

Acha que hoje as pessoas não «se aguen­tam», desistem à primeira dificuldade?
Penso que os mais jovens vão para uma relação já com esse espírito: é enquan­to durar. Este caráter descartável faz que as pessoas sejam menos tolerantes e me­nos capazes de enfrentar certas dificulda­des de forma madura. Mas, ainda assim, o modelo que mais me entristece é o da­queles casais que se mantêm juntos ape­sar de profundamente infelizes. Um deles até pode ter um amante ou uma amante, a quem ama, a quem vê como alma gémea e com quem podia ser feliz, mas é incapaz de tomar uma decisão de mudança de vi­da por falta de coragem. Isso é o que me faz mais confusão.

E há quem procure a terapia de casal para ter alguém exterior, um especialista, que confirme a  impossibilidade de continuar a relação?
Há sempre um misto. Há casais que nem eu, que estou habituada a ver e ouvir tan­ta coisa, percebo como continuam jun­tos, tal o nível de conflito e falta de res­peito mútuo, até eu me questiono como é possível deitarem-se na mesma cama à noite, e mesmo assim vêm à consulta pa­ra tentar recuperar. E, se o objetivo ex­presso é recuperar, nunca avanço com uma terapia de divórcio, mesmo que este­ja escarrapachado que será esse o desen­lace. Depois, é muito fácil perceber quem está a boicotar a terapia e quem não está. Mas a maioria são os que dizem «viemos aqui porque é a última oportunidade que vamos dar à nossa relação, está nas suas mãos resolver».

E está?
Claro que não e, com humor, digo sem­pre «não, está nas vossas». Há casais que vejo mesmo que aquilo não vai funcionar, mas quem sou eu? Se estão cá, há um dé­cimo de esperança e com isso consigo tra­balhar. Já me aconteceu ter casais para quem pouca esperança havia e que volta­ram a apaixonar-se aqui, no final da tera­pia. Deitaram a porcaria toda cá para fo­ra, eu fui traduzindo os discursos de forma diferente, fui fazendo outra leitura do que era dito e que o outro já nem ouvia, porque é já o tom de voz, o olhar, que irrita tanto que deixam de se ouvir… E é muito interes­sante assistir a estes processos, são o maior êxito terapêutico: como é que do nada se consegue outra vez o equilíbrio e o casal descobre até coisas que nunca teve. A ver­dade é que muitas vezes as relações come­çam a ser construídas pelo telhado e não pelos alicerces e quando as pessoas final­mente se permitem perceber o outro e tra­balham ambos para o mesmo consegue-se muitas vezes a continuidade da relação co­mo nunca tiveram.

Os casais têm sempre uma imagem ideali­zada do início da relação, ao qual querem voltar, não é? Isso é contraproducente?
Sim, há muito isso, casais que dizem que querem voltar a ter a relação que tinham quando se conheceram, aos 18 anos. A minha resposta é sempre a mesma: isso vai ser di­fícil. Podem é ter uma relação melhor. Se calhar, aos 18 anos havia a adrenalina e a paixão, mas havia muita insegurança, muita ansiedade, muita dúvida. A maturi­dade e a intimidade podem melhorar a se­xualidade e a vida afetiva. O antes não é necessariamente o melhor. Eu sou mais do a seguir. A idade permite maior prazer, de forma menos ansiosa, menos dramática, menos definitiva.

Os especialistas falam numa «epidemia» de falta de desejo, que se faz sentir sobretudo de­pois do nascimento dos filhos e instalada a roti­na no casal. Mas o dese­jo não morre, até porque muitas vezes é desper­tado por outros, de fora. Como é que trata esta «epidemia»?
O desejo está virado para uma coisa sem pro­blemas, sem papel hi­giénico nem escova de dentes. Às tantas, a re­lação, que era de um com o outro e de faze­rem coisas juntos, co­meça a traduzir-se por ver mais televisão ou ter de cuidar dos filhos, cumprir horários e fa­zer coisas aborrecidas – como levantar cedo para ir pôr os miúdos à escola, vestir, dar banho, fazer o jantar e por aí fo­ra. Essas rotinas são cha­tas mas são centrais na vida das pessoas, que dei­xam de falar de outras coisas e de repente o que tem que ver com o erotismo, com o tempo de casal, com a possibilidade de fugir desta rotina do dia–a-dia, é descurado. E como é que a rela­ção floresce se a pessoa deixa de a regar? Há um desinvestimento e tudo o que tem que ver com a relação começa a ser visto como obrigação. É então que se cria espa­ço para os outros, os de fora, que são todos salvadores da pátria.

E são? Porquê?
Porque a relação está tão cristalizada que as pessoas deixam de se ouvir, acham que já sabem como o outro vai reagir e ativam de­fesas e não se sai disto. Claro que não é sem­pre assim. Há casais que vão verbalizando as preocupações, há casais que, aos 6 meses da criança, já estão aqui a pedir ajuda porque percebem que há alguma coisa que não es­tá a correr bem e não têm tempo para sofrer. Mas nem todos têm a maturidade de perce­ber que as coisas não estão bem e que é pos­sível resolvê-las e é mais fácil quando se olha para fora, para alguém com quem não se partilha a escova de dentes, para alguém que é um mistério e que vem com um papel de embrulho e um grande laço e portanto per­feito, sem pensar no que está lá dentro.

Porque a escova de dentes voltará a fazer das suas?
Não, não defendo que vai voltar a ser sem­pre igual e que por isso não vale a pena ar­riscar. Não é sempre assim. As pessoas não são todas iguais. Há processos que podem repetir-se, mas numa segunda relação tam­bém já sabemos melhor o que queremos e o que não queremos, o que fizemos mal e não devemos repetir.

Então a tal ideia do «consciously uncou­pling» faz sentido?
Sim, acho que as pessoas querem ter se­parações felizes, querem ficar amigas dos «ex» e muitas vezes são fatores externos, ad­vogados, partilhas de bens, etc., que dificul­tam esse processo. Mas é a conversar que as pessoas se entendem, e seja num sentido ou noutro – ficarem juntos ou separarem-se – o diá­logo é fundamental e um terapeuta pode ajudar porque consegue traduzir o que é di­to e às vezes é mais fácil ouvir quando é um terceiro a dizer.

QUEM É MARTA CRAWFORD?
Psicóloga clínica, terapeuta sexual e terapeuta familiar com consulta em Lisboa, no espaço Integra e na Clínica do Homem e da Mulher, é cronista e autora de livros como Sexo sem Tabus ou Viver o Sexo com Prazer – Guia da Sexualidade Feminina, além de já ter apresentado vários programas de televisão sobre o tema.