Juntámos o cineasta António-Pedro Vasconcelos e a atriz Maria do Céu Guerra num terraço de Lisboa. O pretexto foi Os Gatos não Têm Vertigens, o novo filme do realizador, que conta a história de uma viúva idosa que decide ajudar um jovem rejeitado pela família que lhe cai no terraço. É o primeiro grande papel de cinema para uma das maiores atrizes portuguesas. Como é possível o grande ecrã nacional nunca a ter tido?
Importa não esconder. Os Gatos não Têm Vertigens tem uma melhores interpretações femininas em muitos anos. A questão é perceber por que razão Maria do Céu Guerra não foi mais aproveitada pelo cinema português…
_ Maria do Céu Guerra (MCG) – Pois, não aconteceu… coisas da vida. Vivi sempre de costas para o cinema e este de costas para mim. Houve um tempo em que o cinema português tinha um grande preconceito contra o teatro, em especial o chamado cinema novo, que preferia pôr um boxeur a fazer de boxeur. Curiosamente, nos Estados Unidos, o Robert De Niro fez de boxeur e não correu nada mal… Mas, enfim, tudo isso, penso eu, era para fugir à comédia portuguesa, que era muito teatral. Para se criar um outro caminho fugiu-se dos atores. E os que sempre estiveram no teatro foram um pouco postos de lado… Mas ainda cheguei a ver a Eunice Muñoz a fazer o Manhã Submersa, do Lauro António, e ela fê-lo maravilhosamente… Não havia nenhuma teatralidade.
_António-Pedro Vasconcelos (APV) – Houve uma geração de atores que foi sacrificada! Foi a partir daquela fase horrível do cinema português de meados dos anos 1950 até ao aparecimento do cinema novo. E, quando este surgiu, as histórias pediam atores mais jovens. Havia também a mania, que já vinha no neorrealismo e da nouvelle vague, de ir buscar caras novas. Mas em relação à Céu, é surpreendente não terem ido buscá-la mais. De uma forma geral, os atores portugueses ficaram sempre aquém daquilo que poderiam ter feito. Isso tem que ver com a pobreza do nosso meio e de uma certa política do cinema, bem como da importância desmedida das telenovelas. Ainda assim, há também uma tendência do cinema português que gosta de atores.
_ MCG – Mas tu és uma exceção! Tu gostas muito de atores.
_ APV – Não posso dizer que sou só eu, mas o meu cinema gosta de atores, efetivamente!
_ MCG – Por regra, o realizador português não gosta muito do ator.
António-Pedro, como é que se consegue uma interpretação destas?
_ APV – A conjugação de um bom papel e de uma boa atriz. Não há grandes segredos. Acho também que a direção de atores começa na escrita, em especial dos diálogos. Nunca aprendi cinema. Tornei-me cineasta a ver filmes. Costumo dizer que o cinema ensinou-me a viver e a vida ensinou-me a fazer filmes. E cada vez mais percebo que a direção de atores tem muito que ver com sensibilidade. Talvez seja um dom. Esse é o único dom que um cineasta não pode dispensar.
_ MCG – Antes de mais, para se conseguir uma grande interpretação, é preciso que o papel seja interessante para nós. Este papel era muito bonito! Senti-me muito bem a dar algo de mim para esta personagem de uma história muito bem contada, com excelentes diálogos e num filme com um equilíbrio muito bom entre imagem e palavra, coisa rara. Enquanto atriz, nunca tinha trabalhado com o António-Pedro e descobri que ele tem algo extraordinário: é um realizador que gosta de falar e consegue criar uma grande leveza no plateau, a tal ponto que tudo fica explicado com uma suavidade que me permitiu compreender tudo. Não sei se é uma coisa geracional ou se lemos muitos livros em comum, mas compreendemos da mesma forma esta personagem, uma heroína da liberdade que luta em todos os momentos.
Ela é uma mulher de Abril?
_ MCG – É e não tem medo nem vergonha de o ser! Gostei muito de interpretar esta mulher cujo caminho principal é ser livre. A verdade é que resultou numa interpretação que julgava razoável e que depois de feita parece que saiu bem.
Mas um ator percebe quando acerta?
_ MCG – Em cinema não dá para perceber, apenas dá para ter uma ideia: Enquanto no teatro um ator percebe quando agarra a personagem, no cinema tem sempre que ver com o momento…
_ APV – No cinema, um ator tem de confiar sempre no realizador.
_ MCG – Tu inspiras confiança quando dizes não vás por aí e por nunca andares com a mão em cima do nosso cachaço a dizer «faz assim ou faz assado». Deixas acontecer…
_ APV – Há pouco dizias que o filme tinha um equilíbrio entre a imagem e a palavra, mas para mim a imagem serve apenas para contar a história. Não suporto filmes que chegam com manuais de instrução, ou seja, objetos em que os artistas têm de explicar a sua obra. No outro dia, ouvi um cineasta a explicar que o seu filme era muito inspirado no Caravaggio e que quando as personagens estavam no escuro significava não sei o quê. Isso pode ser importante, mas tem de estar subjacente, as pessoas não têm de saber quem é o Caravaggio para perceber o filme. A arte de um cineasta é contar a história!
Curiosamente, Os Gatos não Têm Vertigens estreia-se num período de grande avalancha de estreias nacionais. Têm alguma curiosidade em ver esses filmes?
_ MCG – Eu tenho, mas claro que não gosto dessa ideia de estarem todos a estrear ao mesmo tempo.
_ APV – Cria uma falsa ideia de que há muitos filmes.
_ MCG – Pois, as pessoas vão pensar que há pujança, mas não há.
_ APV – O importante é os filmes serem vistos e não estrearem.
_ MCG – Tenho muita curiosidade de ver Os Maias. Gosto muito do trabalho do João Botelho.
_ APV – No ano passado fizeram-se 17 filmes e eu só ouvi falar de três. Pelos vistos estrearam 14 de que não ouvi falar. Se calhar, andava distraído…. Enfim, foram filmes pelos quais as pessoas não deram.
Acreditam que o vosso filme vai conquistar os portugueses?
_ MCG – O António-Pedro tem essa qualidade de contar bem histórias e o público português gosta de histórias bem contadas. Os filmes dele têm tradição de terem bastantes espetadores, e este toca em problemas importantes para diversas faixas etárias… Ao mesmo tempo, é um filme mágico. Não se apoia apenas no social e fica por aí… joga com a vida e a morte.
_ APV – Os filmes funcionam com o boca-a-boca, mas hoje há uma grande acumulação de coisas e se não são logo vistos, acabam por se perder. É fundamental que as pessoas vão logo ver no primeiro fim de semana. Esse é o trabalho do marketing e tem de ser feito.
Os Gatos não Têm Vertigens é um melodrama à portuguesa?
_ MCG – Não, penso que não! O melodrama nunca se desfaz e este desfaz-se com humor.
_ APV – Creio que não é o chamado melodrama clássico, embora eu seja fã, sobretudo do Douglas Sirk. Este tem um outro lado, não vive apenas dos sentimentos exacerbados. É um filme com uma mensagem: preocupem-se com o outro, não fiquem fechados em si mesmos. É possível dar alguma coisa de si. E a política também tem de ser assim. Se não for, não serve para nada. Ou serve para destruir o país, como está agora acontecer em Portugal.
_ MCG – Penso antes que é um drama urbano repleto de momentos extraordinários de humor.
Maria do Céu Guerra, como está A Barraca hoje? Sobrevive-se apenas?
_ MCG – Devido às más condições que nos estavam a ser impostas, hesitámos em acabar com A Barraca. Pensámos mesmo em acabar, mas antes quisemos testar qual a importância que tínhamos para as pessoas e o peso destes 38 anos de trabalho. Depois percebemos que uma grande parte do país gostava muito de nós e não queria que acabássemos. Essa reação do público foi um prémio e achámos então que deveríamos continuar. E, de alguma forma, quisemos recomeçar. Recomeçámos com energia que fomos buscar ao fundo de nós próprios. Vamos ver como será esta nossa segunda vida. Pelo menos, estamos a tentar.
_ APV – Sou frequentador de teatro, mas cada vez vou menos. Aliás, tenho visto também menos cinema, sobretudo nesta fase entre fazer um filme e estreá–lo. Mas tenho visto, claro, grandes espetáculos em Portugal! Temos sobretudo grandes atores. O que falta é uma dramaturgia, mas aí a culpa passa por não haver tantos apoios à escrita. Neste momento, estamos cheios de grandes ficcionistas e é uma pena não escreverem mais para teatro.
E como olham para a ficção televisiva?
_ APV – Temos uma ficção pobre que empobrece as pessoas. É um círculo vicioso: as pessoas deixam de ser exigentes. Não se oferece hoje boa ficção aos portugueses porque não há dinheiro! As televisões privadas não conseguem, com as receitas publicitárias, ter dinheiro para pagar uma boa série. Tem de haver uma política a sério do audiovisual! O audiovisual talvez seja mais importante do que o cinema, pois os portugueses estão com uma média de quatro horas e meia de televisão por dia! As pessoas são formadas e deformadas pela televisão. Creio que é fundamental darmos meios à televisão pública para investir e inovar na ficção. Tem de haver fundos para se conseguir um upgrade do horário nobre da RTP. Esta nova lei é um zero!
_ MCG – A televisão pública não faz nenhum esforço ou investimento para uma melhoria da ficção. Investem nas novelas, mas a qualidade das histórias não melhora. Em Portugal, há uma coisa misteriosa chamada Casa da Criação, que produz novelas à discrição para todas as cadeias televisivas. Eles descobriram uma coisa extraordinária: o público português gosta do thriller! Só que o thriller tem uma linguagem própria, não é colocar elementos realistas, com atores a mexerem na margarina Vaqueiro – para depois haver um dinheirinho suplementar – e logo a seguir começarem a matar-se todos por causa de um supermercado. Isto é incrível! Não há ligação à realidade! Todas as novelas têm crime. Pode ser incultura minha, mas não conheço nenhuma família de média burguesia que se ande a matar devido a umas empresas… Matam-se, atraiçoam-se e cometem crimes horríveis à desfilada. Trata-se de uma ficção demasiado exagerada, sempre igual e cujo interesse é sempre o mesmo: saber quem é o vilão, bem à medida de Agatha Christie. As novelas são todas iguais. Vende-se uma fórmula.
_ APV – O grande problema da televisão em Portugal é os políticos não perceberem que isto é vital!
_ MCG – O avanço que Portugal tinha vindo a fazer em matérias culturais desde o 25 de Abril foi atraiçoado de forma mortal nos últimos três anos por este governo, A única hipótese de não cairmos num poço negro é nas próximas legislativas termos alguém que perceba o que é a cultura e a sua importância.
_ APV – O insuportável nestes tipos de direita é a sua total insensibilidade para as questões da cultura…
Seja como for, no 25 de Abril houve um grande momento de televisão com a Maria do Céu Guerra no Melhor do Que Falecer, de Ricardo Araújo Pereira…
_ APV – Bom exemplo de que a televisão ainda pode oferecer grandes momentos.
_ MCG – Foi uma coisa simples. Tenho uma grande admiração pelo Ricardo e ele tem por mim. Perguntou-me se eu queria que ele escrevesse aquele texto do 25 de Abril para mim e, eu, obviamente, quis logo! Fiz e correu bem.
Se Os Gatos não Têm Vertigens aborda o tema da terceira idade, a pergunta tem de ser feita: ainda têm muitas histórias para contar na vossa idade?
_ MCG – Não vou desistir. Em teatro, tenho para aí umas cinquenta histórias para contar. Nós somos, na origem, contadores de histórias. Imagino neste momento para A Barraca um espetáculo sobre um período após o assassínio de António José da Silva, o Judeu, e outro sobre o feminino na obra de Saramago.
_ APV – Não sou de me queixar. Detesto o queixume, um dos piores defeitos de Portugal, mas se me puser a pensar no que poderia ter feito nestes últimos anos e não fiz, dou um tiro na cabeça! Tenho 75 anos e há tanta história para contar! Ainda espero fazer mais filmes, mas se a legislação se mantiver como está não consigo filmar mais. Voltei a fazer traduções porque não consigo voltar a trabalhar em cinema.
_ MCG – Mas tens de ter a tua energia, capacidade e vontade!
_ APV – Não chega! Esta regulamentação apenas permite que filme algo em três ou quatro semanas e com uma personagem fechada num elevador… Aí talvez consiga. E voltei a fazer traduções porque tenho de sobreviver e quero lutar para não acabar como um sem-abrigo. Uma coisa que também estou a fazer e que me dá gozo é dar uns workshops sobre a história do cinema no El Corte Inglés. Adoro ensinar e tenho apanhado desde velhos a crianças. Uma coisa que gostava de fazer era encenar. Nunca me convidaram. Gostava também de escrever canções. Fui eu que escrevi a canção para a Ana Moura que aparece no filme.
_ MCG – A letra de Meu destino foi o amor é deslumbrante.
E os tempos de comentador de futebol podem regressar?
_ APV – Até certa altura deu-me gozo estar no Trio de Ataque, mas depois passou de um programa de cavalheiros para algo desagradável. Mas gosto muito de bola, penso que é um ciclo que acabou. Regressar? Não depende de mim.
Neste momento, como é que comentava este Benfica?
_ APV – Como as pessoas sabem, no primeiro dia em que o Jorge Jesus chegou ao Benfica disse que ele era melhor do que Mourinho. Na altura, caiu-me o Carmo e a Trindade em cima. Agora, o tempo está a dar-me razão. O problema do Jesus é que o «outro» também fazia milagres e acabou crucificado.
_ MCG – Este também vai acabar por ser.
_ APV – Espero bem que não. O Jorge é duro de roer.
Maria do Céu Guerra
Grande dama do teatro português, Maria do Céu Guerra continua à frente da sua companhia, A Barraca, no Teatro Cinearte, em Lisboa, depois de um percurso que passou pela companhia Casa da Comédia e o grupo Adóque. Aos 71 anos, recebe em Os Gatos não Têm Vertigem o seu primeiro grande papel em cinema, após personagens secundários em filmes como Os Cornos de Cronos, de José Fonseca e Costa ou Crónica dos Bons Malandros, de Fernando Lopes.
Outra das suas paixões é o ensino. Lecciona a cadeira Artes Espetáculo-Interpretação no Instituto para o Desenvolvimento Social.
António-Pedro Vasconcelos
Cineasta que sempre tentou fazer um cinema para o grande público. Filmes como Os Imortais, Jaime e O Lugar do Morto foram sucessos de bilheteira. O Futuro da Ficção é o seu livro mais recente, um ensaio sobre o audiovisual português. Conhecido por ser um benfiquista fervoroso, APV, como é apelidado, é também confrade de algumas ordens gastronómicas. Grande Oficial da Ordem D. Infante Henrique, chegou a ser o coordenador do curso de cinema da extinta Universidade Moderna.
Agradecimentos: Park, Calçada do Combro, 58, Lisboa