Procurar casa é mais do que procurar um sítio que corresponda às nossas necessidades ou expectativas, para aí fazermos vida. É também ver como se fez a vida de muitas famílias em determinada época, em determinada cidade. Através das suas plantas consegue-se perceber quais os valores mais importantes e qual o equilíbrio entre a vida privada e a vida social da altura. E, através das remodelações feitas, consegue-se perceber como é feita agora a vida de quem lá mora.
A nossa casa é, ou deveria ser, uma extensão de nós. Assim sendo, desde o início do século XX, até aos anos 50, os prédios onde a vida se fazia em Lisboa eram feitos de chão de tábuas de madeira corridas, que balançavam ao ritmo dos pés, ao ritmo da vida que as atravessava. A luz solar parecia não ter muita importância na vida privada. Pelo menos, a observar pelos quartos interiores. Nestas casas, o corredor longo ajudava a distribuir as divisões da casa em linha recta e remetia os quartos de dormir à escuridão sem janelas e ao consequente recatamento da vida privada que a época exigia. A sala de estar, local de convívio, tinha grandes janelas, por onde a luz entrava, aí, já bem-vinda. Muito poucos prédios tinham elevador, mesmo tendo 3 ou mais pisos.
A partir dos anos 1950 e do advento do betão armado, esse avanço da engenharia que permite que o chão debaixo dos nossos pés seja mais firme e menos balançante, a forma de pensar as casas das famílias da classe média modificou-se. Falo das casas da classe média, porque a ela se destinavam os prédios construídos. E, a partir da segunda metade do século passado, as plantas reflectiram as exigências do conceito de modernidade de então. Junto à cozinha, o quarto da criada, com casa de banho incluída, para estabelecer o seu perímetro de acção e a sua função na casa, de forma inequívoca. À frente, do outro lado do corredor, a sala de estar, ligada à sala de refeições. Duas divisões juntas, separadas por arcos, que ajudavam a organizar as funções de cada espaço. Algumas casas tinham ainda um escritório, colado ao hall de entrada. Nas mais antigas, o escritório poderia fazer as funções de loja, onde se recebiam os clientes. Daí a sua proximidade relativamente à porta da rua. Depois do espaço social, os quartos, já com janela incluída. Um maior, para o casal, outro ou outros mais pequeno(s), para as crianças.
A partir do final do século XX e início do século XXI, as casas voltaram a mudar. A sala, já sem a separação entre a zona de refeições e a zona de estar, é a maior divisão da casa, sacrificando o espaço reservado aos quartos, que são relegados para segundo plano na escala de valores atribuídos a cada divisão. Podem ser mais pequenos os quartos, mas a presença de uma suite na casa torna-se importante. Com alguma sorte, há uma zona de armários que poderá, consoante o seu tamanho e disposição, ser um closet. Não há quarto da criada, porquanto a figura da criada interna há muito deixou de existir na maior parte das famílias portuguesas.
Não é fácil obrigar a que o Passado sirva na perfeição o Presente. São vidas passadas, as que habitaram as casas do antigamente. Estranhas formas de vida, para alguns. A maneira como se transportam as diferentes visões e modelos de vida presente para cada uma destas plantas, revela muito acerca de nós. O tipo de casa onde vivemos, a planta que escolhemos abraçar ou que pretendemos modificar, a remodelação que fazemos, tudo ajuda a mostrar uma parte de quem somos. Principalmente, percebe-se que os versos camonianos “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, se aplicam também à casa onde moramos e àquilo que consideramos ser importante ou não.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[02-03-2014]