
Mas para lá caminha. Mathilde Thomas abdicou da carreira de perfumista para fundar a Caudalíe, trazendo para a cosmética o poder regenerador do extrato de uva. A marca, com quase 20 anos, tornou-se um sucesso global. Mas para Mathilde, nada mudou: vai de bicicleta para o escritório e é sempre a primeira a testar os produtos da marca.
Todas as semanas, Mathilde Thomas vai para trás do balcão de uma das boutiques da Caudalíe, nos EUA, e conversa com as clientes. Apresenta- se, explica os produtos, trata da venda. Ocasionalmente, espreita as grandes superfícies, controlando a concorrência. Oferece ajuda quando vê mulheres hesitando entre os cremes e séruns da marca que fundou há quase 20 anos com o marido, Bertrand Thomas. «Tenho feedback a toda a hora. Para mim, é muito importante estar em campo, falar com a cliente.» Quer saber quais são os produtos preferidos, se agradam ao toque, se o perfume incomoda. Quer ter todas as informações em primeira mão, dar-lhes tratamento útil e transmiti-las às várias equipas com quem trabalha, mesmo à distância: a Caudalíe tem sede em Paris – apesar de ter nascido nos vinhedos de Bordéus –, mas os proprietários vivem em Nova Iorque há quatro anos. Os funcionários da empresa percebem a importância do gesto: também eles saem dos escritórios e vão, alguns dias por ano, contactar diretamente com os compradores, prestando uma espécie de atendimento personalizado. É «política da casa» e ninguém se opõe.
Mesmo que a marca já seja comercializada em cerca de 25 países e Mathilde Thomas se tenha tornado a face mais visível da Caudalíe, garante que não é reconhecida nas suas incursões pelas lojas. «Ainda não sou a Estée Lauder», diz, e ri-se em voz baixa. «Mas veremos», acrescenta em tom de provocação. Afinal, a Caudalíe tem vindo a ganhar espaço nos mercados europeus e americanos. Falta conquistar a Ásia, mas o processo está em curso: em setembro de 2015, Mathilde, o marido e os três filhos pequenos mudam-se para Hong Kong. «É preciso crescer no continente asiático para investir na Europa, onde o mercado é mais difícil.» Quando a família saiu de França, a decisão foi igualmente pragmática. «Estávamos a perder dinheiro nos EUA. O Bertrand telefonou-me e disse: “Mathilde, ou fechamos a Caudalíe USA ou mudamo-nos para :cá.” Nem hesitei.» Levou-lhes dois anos a preparar a mudança, porque foi preciso recrutar uma equipa para os substituir em França ao mesmo tempo que se ocupavam com a logística de mudar a família para o outro lado do Atlântico. «Os recursos humanos são sempre o maior desafio», diz. Os trabalhadores da Caudalíe são escolhidos criteriosamente porque há um ambiente familiar que querem manter: as vinhas em Bordéus, onde a marca começou, são propriedade dos pais de Mathilde, o casal Florence e Daniel Cathiard, que há 24 anos decidiu mudar de vida e dedicar-se a reabilitar os vinhedos do Château Smith Haut Lafitte.
Hoje, o vinho que era ex libris da região recuperou o protagonismo perdido. A propriedade trabalha com tecnologia de ponta, para apurar ao máximo a qualidade do néctar, e tem a sua própria tanoaria. Quase em paralelo, a Caudalíe foi crescendo, mas se os Cathiard não tivessem mudado para Bordéus, provavelmente nem existiria. A família era de Grenoble, a capital dos Alpes franceses, onde Mathilde nasceu. Os pais conheceram-se na equipa francesa de esqui e, à época, tinham uma cadeira de lojas de roupa desportiva. Na adolescência, Mathilde percebeu que reconhecia facilmente os ingredientes nos perfumes e começou a treinar o olfato nas perfumarias. O primeiro emprego foi em Madrid, na L’Oréal, no departamento de fragrâncias da Cacharel.
Na escola de gestão, em Nice, tinha conhecido Bertrand, o futuro marido. «Ele tem um espírito empreendedor, mas eu estava muito feliz com as minhas fragrâncias», recorda. Andavam à procura de um projeto aliciante na área da cosmética, para começarem a própria empresa. E cruzaram-se com o professor Vercauteren, um cientista da Faculdade de Farmácia da Universidade de Montpellier. Nessa altura, os pais de Mathilde já tinham vendido as lojas e comprado a propriedade de Bordéus. Vercauteren aproveitara a época das vindimas para fazer investigação em campo e, assistindo à separação das grainhas da uva, que não são usadas no vinho, disse a Mathilde e a Bertrand que, ao deitá-las fora, se desperdiçavam «tesouros». Explicou-lhes que a semente de uva tem polifenóis que, uma vez estabilizados, seriam poderosos agentes antienvelhecimento e fariam um fabuloso creme antirrugas. «Ele estava tão entusiasmado, sentimos que tínhamos ali algo muito interessante em mãos.» Decidiram financiar a investigação do professor e conseguiram patentear a molécula. «Juntámos 20 mil francos, fomos ao banco e criámos uma empresa chamada Caudalíe.» Convém acrescentar que o nome não surge ao acaso: caudalie vem do latim e é a medida da duração do vinho no palato.
Isto foi em 1995. «Tínhamos vinte e poucos anos, não sabíamos onde íamos vender, qual seria o aspeto dos produtos, tivemos de criar tudo.» Poucos anos depois, em 1999, deram novo passo para o sucesso da marca: os Cathiard tinham construído um salão, que arrendavam para festas na vinha, e os convidados perguntavam se não havia um sítio próximo para passar a noite. Pensaram fazer um bed and breakfast, que passou a hotel de cinco estrelas graças a investidores americanos de Napa Valley. Quando souberam que, no terreno, havia uma fonte de água termal, Mathilde e Bertrand decidiram abrir ali o primeiro spa da Caudalíe, só com produtos da marca. «Chamámos-lhe vinoterapia. Foi uma espécie de provocação», conta Mathilde. «Não se toma banho numa barrica a beber Château Smith Haut Lafitte por uma palhinha.» Mas como todos os produtos são à base de uva, acharam apropriado o neologismo e a provocação valeu-lhes visitas de todo o mundo. Ao conjunto do hotel e do spa, a família chamou Les Sources de Caudalíe, evocando as raízes da marca que começava a ser conhecida. O empreendimento é gerido por Alice Tourbier, irmã de Mathilde, e tornou–se ponto de passagem da região vinícola. Entretanto, choveram convites para abrir spas noutros pontos do globo, mas os Thomas são criteriosos na seleção. Portugal, excecionalmente, tem dois spas da marca, um no Porto e outro no Alentejo.
Depois dos polifenóis, a Caudalíe continuou a investigação científica e tem vindo a crescer no número de patentes, a partir dos ingredientes extraídos da vinha. É Mathilde quem testa todas as fórmulas enviadas pelos dermatologistas e avisa o laboratório se o creme está demasiado oleoso ou é preciso acentuar o perfume. De Nova Iorque, supervisiona todos os departamentos em França: passa as manhãs ao telefone ou em video-conferência, depois de deixar os filhos na escola e ir de bicicleta para o escritório. «Queremos continuar independentes», diz. Vender a Caudalíe a um grande grupo está fora de questão mas ainda são «um David contra Golias». «Por isso vamos para a Ásia. Queremos construir uma marca global».