Açúcar, o veneno doce

Não lhe resistimos nos dias de festa e também é o que nos apetece sempre que a tristeza aperta. Falamos do açúcar, um produto que sabe bem e dá prazer. Mas se consumido regularmente e em demasia põe-nos gordos e gravemente doentes. É o que está a acontecer.

Açúcar. Já foi apreciado como especiaria, consumido como medicamento, usado como adoçante e nenhum mal teria vindo ao mundo se tivéssemos continuado a consumi-lo raramente e com moderação, como sucedeu durante milhares de anos. O açúcar era um bem raro – encontrava-se apenas na fruta, em algumas plantas, raízes e no mel – e o organismo habituou-se a armazená-lo, sob a forma de glicose, para ter energia de reserva para os períodos de carência alimentar.
Mas um dia tudo mudou. E se é verdade que a primeira grande alteração ocorreu há dez mil anos, com o surgimento da agricultura, a outra veio na sequência da Revolução Industrial, quando o homem pôs de lado as farinhas e os grãos integrais (hidratos de carbono complexos, ou seja, açúcares de absorção lenta e ricos em fibra, vitaminas e minerais) e passou a consumir cereais refinados (hidratos de carbono simples, isto é, açúcares que o organismo transforma rapidamente em glicose). Pior só o que sucedeu a partir da segunda metade do século passado, quando o açúcar – a sacarose, mas também a frutose e outros glícidos – começou a ser usado como aditivo na indústria alimentar.
É precisamente contra a indústria da comida processada que Robert Lustig, um distinto endocrinologista pediátrico americano que também é professor na Universidade da Califórnia, em São Francisco, está em guerra aberta há alguns anos: é a responsável pelo aumento da obesidade, diabetes tipo 2, hipertensão, doenças cardíacas e fígado gordo de causa não alcoólica. E provavelmente cancro também. Tudo por causa do açúcar refinado que é adicionado à generalidade dos alimentos processados, acusa o investigador.
Autor de vários trabalhos científicos, Lustig acabou por conquistar a atenção do público em 2009, quando divulgou o vídeo Sugar: The Bitter Truth (“Açúcar: A Verdade Amarga”), onde apelida o açúcar de «toxina», «veneno» e «demónio». Na comunicação, vista por mais de quatro milhões de pessoas no YouTube, o professor de Endocrinologia Pediátrica explica que o açúcar não é apenas o pó branco e granulado com que adoçamos o chá ou o café – a sacarose -, mas também o xarope de milho com alto teor de frutose, o adoçante mais usado pela indústria alimentar desde os anos setenta do século passado e que é adicionado à esmagadora maioria dos alimentos processados. Às guloseimas – bolos, bolachas, bombons, chupas, gomas, etc. – mas também aos cereais de pequeno-almoço, refrigerantes, iogurtes, compotas, douradinhos, lasanhas, salsichas, almôndegas, molhos, sobremesas e por aí fora.
No ano passado, em fevereiro, Robert Lustig voltou à carga e desta vez fê-lo através de um artigo publicado na revista Nature – «The Toxic Truth about Sugar», ou «A Verdade Tóxica sobre o Açúcar», em português – em que afirma, categórico, que o açúcar é tóxico, induz dependência e deve ser visto como um verdadeiro problema de saúde publica. O professor pede a intervenção das autoridades de saúde – defende um controlo sobre a venda idêntico ao que se faz com o álcool, que é proibido a menores de 18 anos – e propõe que os governos taxem os alimentos que tenham açúcar adicionado.

NA ORIGEM DE TODOS OS MALES
Ricardo Silvestre, especialista em fisiologia e metabolismo humano, partilha a ideia de Lustig de que o açúcar é um veneno. E explica porquê: «O açúcar refinado é um sacarídeo e, tal como todos os hidratos de carbono, uma vez metabolizado transforma-se em glicose, a energia de que o corpo necessita para funcionar. Mas há sacarídeos e sacarídeos. O açúcar é uma substância sem qualquer valor nutricional – fornece calorias vazias, de absorção rápida, e causa problemas metabólicos, nomeadamente obesidade, colesterol alto, hipertensão e níveis elevados de glicemia e insulina, que podem provocar doenças graves. Os únicos sacarídeos de que precisamos são os hidratos de carbono complexos, com fibra, vitaminas e açúcares naturais, que são absorvidos lentamente pelo organismo.»
Se todos os dias comermos cereais açucarados ao pequeno-almoço, hambúrguer no pão e refrigerante ao almoço, leite achocolatado e um bolo ao lanche, piza e refrigerante ao jantar, iogurte açucarado ao deitar (alimentos com doses elevadas de açúcares adicionados), o que é que acontece? É simples, diz o especialista: «O organismo é incapaz de consumir tanta glicose e guarda-a para usar mais tarde. Armazena-a no fígado sob a forma de glicogénio. Mas como lhe damos excesso de açúcar todos os dias, aquelas reservas também não são usadas e acabam por ser transformadas em gordura. É esta a origem da síndrome metabólica. E também é por isso que as crianças que habitualmente bebem refrigerantes, comem bolos, gelados, gomas, chocolates e por aí fora começam a engordar», explica Ricardo Silvestre.
A obesidade é a face mais visível de um problema maior, afirma Cristina Sales, a médica do Porto que há muitos anos estuda a relação entre alimentação e doença: «Falo dos picos de insulina. Os hidratos de carbono simples, os açúcares, transformam-se rapidamente em glicose e, para impedir que os níveis de açúcar no sangue disparem após uma refeição, o pâncreas liberta insulina. Quando a glicose baixa, o pâncreas para a produção de insulina e começa a libertar glucagon, a hormona que transforma a energia armazenada, o glicogénio, em glicose. Mas se comermos alimentos açucarados em excesso e com regularidade o pâncreas está sempre a produzir insulina e a armazenar glicose.»
Resultado? O organismo começa a fazer os chamados picos de insulina, que estão na origem de muitas complicações. Uma delas é a resistência à insulina, que «começa por se manifestar através de hipoglicemia, fadiga, sonolência apôs as refeições, alterações do humor, inchaço, aumento da gordura abdominal, dos triglicéridos e da pressão arterial». Com o passar dos anos, explica Cristina Sales, «vem a inflamação, a obesidade, a diabetes tipo 2, a aterosclerose, a doença cerebrovascular e o fígado gordo».
A prevenção destas doenças passa pela redução drástica da ingestão de açúcar: «O ideal é viver sem consumir nenhum açúcar, pois o único açúcar de que o organismo necessita é o que absorve no processo de digestão dos hidratos de carbono complexos – leguminosas, hortaliças e alguns legumes, que se transformam em glicose lentamente – e o da fruta, a frutose – que é um açúcar rápido, mas contém fibras, que ajudam à digestão e aumentam a saciedade. E o que verifico nos doentes que acompanho é que grande parte das doenças associadas à alimentação, e sobretudo ao consumo de açúcar, são evitáveis e às vezes reversíveis só com mudanças na alimentação.»
Ricardo Silvestre também diz que ser gordo, hipertenso, ter colesterol e triglicéridos elevados e diabetes não é uma fatalidade. A quem tiver dúvidas, o fisiologista aconselha a leitura dos trabalhos do professor Jeff S. Volek, da Universidade do Connecticut, um respeitado e reconhecido investigador na área da nutrição, doenças metabólicas e exercício, com quem o português fez o doutoramento e ainda continua a trabalhar.

 

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CONTROLAR O CONSUMO
Entretanto, nos EUA, o endocrinologista Robert Lustig prossegue com a sua cruzada contra os açúcares refinados – recentemente publicou o livro Fat Chance: Beating the Odds against Sugar, Processed Food, Obesity and Desease (Grandes Hipóteses: Vencer o Destino contra o Açúcar, as Comidas Processadas e a Obesidade, ainda sem edição portuguesa), onde explica detalhadamente porque é que o açúcar e a comida processada que ingerimos estão a tornar-nos obesos e muito doentes – e são cada vez mais os que lhe dão ouvidos. Por exemplo, a Associação Americana de Cardiologia, que até há poucos anos via nas gorduras o grande inimigo do coração, já reconheceu «a relação entre o elevado consumo de açúcares refinados e a pandemia mundial da obesidade e das doenças cardiovasculares» e, em 2009, publicou recomendações para o consumo diário de açúcar: um máximo de 25 gramas para as mulheres (equivale a quatro pacotes de açúcar, a dois pastéis de nata, a um queque ou a um iogurte com fruta açucarado) e 37,5 gramas para os homens (corresponde a seis pacotes de açúcar, a uma lata de refrigerante, a um jesuíta ou 100 ml de licor de anis).
A mudança também já se vê no Prato de Comida Saudável da Harvard Medical School, uma referência mundial onde os açúcares refinados já não têm lugar. E quanto aos cereais, a prestigiada universidade americana recomenda o consumo de integrais, incluindo pão, arroz e massa. Curiosamente, o grupo dos vegetais deixa de fora a batata, um tubérculo rico em amido (também é um açúcar), e as batatas fritas.
Ao contrário, a Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar ainda não fixou recomendações sobre o assunto e o mais que assume no documento sobre os Valores de Referência Europeus para a Ingestão de Nutrientes é a confirmação entre o consumo de alimentos açucarados e a cárie dentária e entre o consumo de bebidas açucaradas e o aumento de peso. Mais, o organismo europeu continua a defender um aporte diário de hidratos de carbono (onde inclui o amido e os açúcares simples) entre 45 e 60 por cento, tanto nos adultos como nas crianças.
A evidência de que o açúcar é um alimento mau começa a ser tida em conta nas estratégias definidas pela indústria alimentar. Por exemplo, a Nestlé, o gigante que gasta cerca de mil milhões de euros por ano em pesquisa no campo das ciências da nutrição, diz que «tem vindo a investir muito esforço e dinheiro em projetos de otimização nutricional, nomeadamente ao nível da redução de sal, açúcares e gorduras, principalmente nas categorias com mais relevância no dia a dia alimentar e nos produtos dirigidos a crianças.» De acordo com uma nota enviada à Notícias Magazine pela Direção de Relações Corporativas da Nestlé Portugal, «desde 2003 que as receitas de cereais de pequeno-almoço têm vindo a ser reformuladas a nível mundial no sentido de incluir uma quantidade progressiva de cereais integrais e de reduzir os açúcares». A empresa afiança que as novas receitas de cereais de pequeno-almoço para crianças lançadas já este ano são disso um exemplo. Mas é tudo uma questão de contas. Enquanto a Nestlé destaca que, com as novas receitas, garante menos de 9 gramas de açúcares por porção de 30 gramas (cerca de seis colheres de sopa, sem incluir o leite), nós verificamos que a referida gama de cereais contém entre 25 e 30 por cento de açúcar adicionado – isto é, por cada 100 gramas de produto, entre 25 e 30 gramas são… açúcar.

HISTÓRIA AMARGA
Não se conhece ao certo a origem da cana-de-açúcar, mas há registos que apontam para a sua utilização pelos povos das ilhas do Pacífico, onde cresceria espontaneamente há mais de vinte mil anos. Terá sido cultivada pela primeira vez na Nova Guiné, há dez mil, e a sua cultura estendeu-se depois às ilhas Fiji e Nova Caledónia, até chegar às Filipinas, Indonésia, Malásia e Índia por volta do ano 1000 a.C.
Reza a história que os indianos terão sido o primeiro povo a conseguir extrair o suco da cana e a produzir açúcar, por volta do ano 500 a.C. Usavam-no como medicamento para alívio da dor. Mas o segredo da refinação também chegou à Pérsia – o imperador Dário terá ficado impressionado com umas canas que davam mel sem a ajuda das abelhas -, onde o açúcar terá começado a ser usado no fabrico de doces. Mas só no século VII d.C. é que a cana terá chegado ao Mediterrâneo e à Europa. Veio pela mão dos árabes, já rendidos às propriedades medicinais e gastronómicas do açúcar. Nos séculos seguintes, continuou a ser usado como produto medicinal ou especiaria rara, era vendido em boticários e o seu preço era tão elevado que só os nobres e os muitos ricos podiam adquiri-lo.
A partir do século xv , a história do açúcar e do comércio da cana é também a história de Portugal. Primeiro, o infante D. Henrique mandou cultivar a cana na ilha da Madeira, onde a planta se adaptou muito bem. Mas foi depois da descoberta e colonização do Brasil – terrenos férteis, clima tropical, mão-de-obra escrava com fartura – que Portugal passou a dominar, juntamente com os espanhóis, as rotas comerciais do açúcar (entretanto chamado de ouro branco e usado para adoçar as novas bebidas – café, chá e cacau). Produzido em grandes quantidades nas plantações e engenhos do Nordeste (no século xvii o Brasil já era o maior produtor mundial de cana sacarídea, posição que ainda hoje ocupa), as receitas do comércio do açúcar foram fundamentais para a coroa portuguesa.
Em 1747, Andreas Marggraf, um químico alemão, conseguiu produzir açúcar cristalizado a partir de beterraba, criando uma alternativa ao açúcar de cana. Com o passar dos anos, o cultivo de beterraba para produção de açúcar acabou por vingar na Europa, mas a indústria portuguesa de refinação continua a trabalhar exclusivamente com cana. Mas essa é outra história. A que aqui importa é que do ponto de vista alimentar o açúcar – de cana ou de beterraba – é idêntico: não tem qualquer valor nutricional.

O AÇÚCAR VICIA?
Mas, afinal, porque é não resistimos a um doce? A resposta é simples: «O açúcar estimula a secreção de serotonina e dopamina, dois neurotransmissores que nos fazem sentir bem e que nos dão prazer», explica Cristina Sales. Por isso, quando estamos mais tristes ou ansiosos e abrimos o frigorífico ou a porta da despensa em busca de uma guloseima, não fazemos mais do que procurar alimentos que nos proporcionam uma subida imediata da serotonina e da dopamina. «Quando comemos açúcar, o cérebro fica em alta e nós também. O problema é que quando a serotonina baixa, sentimos os efeitos da quebra e somos incitados a comer mais doces, com todas as complicações que daí advêm», adverte a médica.

 

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COMPANHIA DOS AÇÚCARES

Sacarose – De cana ou de beterraba, branco , amarelo ou castanho, em cubos, cristais ou granulado , em calda, xarope ou em ponto… O açúcar de mesa é constituído por cinquenta por cento de glucose e cinquenta por cento de frutose (este último é o tipo de açúcar que está naturalmente presente na fruta). É um açúcar simples, de absorção rápida e perfeitamente dispensável pelo organismo. Fornece 4 kcal por grama. É usado como adoçante, na pastelaria, na confeitaria e indústria alimentar.

Frutose – É o açúcar extraído das frutas e legumes, onde se encontra presente em pequenas quantidades. Mas também pode ser extraído do milho – xarope de milho com alto teor de frutose – e é muito usado pela indústria alimentar na preparação de bebidas, pão, bolos, geleias, produtos lácteos e outros. O seu consumo excessivo é perigoso, pois este açúcar é rapidamente convertido em gordura pelo fígado.

Mel – Composto por glicose, mas também tem pequenas quantidades de vitaminas (tiamina, riboflavina, niacina, vitamina B6) e minerais (cinza, fósforo, magnésio, potássio, fósforo, ferro e zinco).

Outros – A lactose, sacarose, maltose e dextrose também são açúcares.

EFEITOS NA SAÚDE
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a cada ano que passa as doenças não transmissíveis matam 36 milhões de pessoas e destas nove milhões têm menos de 60 anos. Só as doenças cardiovasculares são responsáveis pela morte de 17,3 milhões, seguidas do cancro (7,6 milhões), das doenças respiratórias (4,2 milhões) e da diabetes (1,3 milhões). Portugal não é exceção. No nosso país, a OMS estima que as doenças não transmissíveis sejam responsáveis por 86 por cento da mortalidade total (102 848 óbitos em 2011), sendo as doenças cardiovasculares (37 por cento), o cancro (26 por cento) e a diabetes (cinco por cento) as que mais matam.

CADA PORTUGUÊS COME 16 PACOTES POR DIA
34,7 kg por ano. Eis a quantidade de açúcar refinado consumido, em média, por cada português em 2012. Isto significa que cada um de nós ingere 2,9 kg de açúcar por mês, ou seja, 96,3 gramas por dia – para ter uma ideia mais precisa, é como se comêssemos todos os dias 16 pacotes de açúcar daqueles com que adoçamos o café ou, se preferir, 23 colheres de chá de açúcar. Os números são do INE.

[Publicado originalmente na edição de 01.09.2013]