
E por falar em auto-retratos (vide crónica da semana passada), eis que o concerto de homenagem a António Variações termina com um. E assim terminou, também, a minha participação activa nos concertos do Rock in Rio. Digo activa, porque me refiro à participação em cima do palco. Mas, na verdade, quando estamos no público, também fazemos parte do concerto. Somos um dos instrumentos que dão corpo à música. Se não for assim, se nos ficarmos pela participação passiva (passe o paradoxo), a coisa deixa de ter tanta graça.
Então, vamos por partes. Primeiro, no palco. António Variações faria 70 anos, em Dezembro deste ano. Passados 30 anos da sua morte, não o temos, infelizmente, em corpo, mas temos o seu espírito livre e o seu génio no cancioneiro rico e variado que nos deixou. Pegámos no seu legado, nós, a Gisela João, os Linda Martini e o Rui Pregal da Cunha e o Paulo Pedro Gonçalves e levámo-lo para o palco. Foi um momento de partilha e de alegria que terminou com o tal auto-retrato dos músicos e do público que assistia à homenagem.
Antes desse dia, já tinha havido Rock in Rio para mim. No dia 29, os Rolling Stones pisaram o palco. Os anos 60 são fundamentais para mim. Conheço-os bem e uma boa parte de quem sou musicalmente é-lhes devida. Alguns dos meus grandes heróis musicais pertencem a essa década. E digo pertencem porque muitos ficaram por lá. A Janis Joplin, o Jimi Hendrix, o Otis Redding, o Jim Morrison. Dos sobreviventes, já poucos tocam. E dos que tocam, ainda menos o fazem como se mantivessem o vigor da juventude.
Vim do concerto dos Stones com uma lágrima de emoção pendurada no rosto. Não só porque me mostraram que a paixão que se tem pela música pode ser tão grande e intensa que faz que, aos 70 anos, se pareça que se tem 18, tal é a entrega e a energia que se coloca em cada concerto, como foi uma oportunidade única de estar «perto» dos anos 60 e de tudo aquilo que representam para mim. Como bónus, ainda se assistiu a uma participação especial do boss Springsteen, que não podia ter escolhido altura mais certa para andar por Lisboa. Ainda por cima, tendo conseguido ver o concerto de um lugar bem perto do palco, a sensação de proximidade intensificou a emoção própria de quem assiste a um momento único. Para finalizar, o momento inusitado da noite: mesmo atrás de mim estava Bill Clinton. Guardar-se-á na memória um concerto cheio de tantas coisas boas.
No dia em que tocámos, seguia-se a nós Lorde e Arcade Fire. Tinha curiosidade em ver como Lorde, com apenas 17 anos, iria comportar-se em palco. Andava desconfiada de que iria ser coisa boa. Gosto da sua música e da sua postura. E não desiludiu. Acompanhada por um baterista e um homem dos teclados e electrónica, a pequena Lorde fez-se grande. Do tamanho do Palco Mundo, como lhe chamam. Tem aquilo de que gosto: quando está em palco entrega-se à música como se fosse o último concerto da sua vida, sem se importar com as lentes das câmaras e as aparências físicas.
No final, uns Arcade Fire demolidores. Num concerto em ritmo alucinante, quase sem espaço para palmas entre canções, como se de uma ópera se tratasse, deixou a multidão que os ouvia rendida. Não só rendida, exausta. Foi impossível não fazer parte daquele concerto.
Esse é o segredo dos concertos que se tornam especiais. Quando se consegue destruir a «quarta parede», aquela cortina invisível que separa público e músicos, e se traz toda a gente para o palco (ainda que em sentido figurativo), para se cantar a uma só voz.
Ana Bacalhau escreve de acordo com a antiga ortografia