«Acreditei que as mãos de uma mulher não eram para a guitarra portuguesa»

Discípula e companheira de Carlos Paredes, Luísa Amaro foi a primeira mulher a gravar um disco de guitarra portuguesa. Fala sobre o caminho duro que escolheu e da convivência com o músico e com a sua herança – que a marcou, enquanto sua acompanhante no palco e nos últimos anos de vida e doença. Ciclicamente, desce «ao fundo do poço, bate no fundo» e emerge com um novo trabalho. Agora, lançou Argvs.

Em regra, os guitarristas são enigmáticos, introvertidos. Porquê?
Todos os músicos terão o seu lado de introversão, muitas vezes por timidez; a viola é um instrumento por si só intimista, com um som delicado e suave: isso talvez molde o executante a uma postura mais fechada sobre si. E o facto de estarmos dobrados sobre o instrumento talvez dê uma postura diferente. Dou um exemplo: um violino em palco contrasta totalmente com a viola, é muito exuberante. Eu nunca seria capaz de me expor dessa maneira.

Por vezes, ao vê-la tocar, fica a ideia de que se esconde atrás da guitarra. Esconde-se?
Em palco, nunca nos podemos esconder. Acontece que a guitarra é o veículo de transmissão entre o que sou e o que quero dar; talvez ela adquira um protagonismo que, aos olhos de quem vê, deveria ser meu. Com o tempo aprendi que há duas formas de estar na música: ou a usamos para nos evidenciarmos, ou nos usamos para a valorizar. Prefiro a segunda, claro. Deve ser isso que sente.

Que relação tem com a guitarra? Paco de Lucía dizia que a guitarra é ingrata.
Ingrata, sim, mas também uma grande amiga, sobretudo nos momentos mais difíceis: é com ela que desabafo e me reequilibro emocionalmente. Em palco, quando o calor, a humidade ou o frio acontecem, ela é caprichosa e reage. Demora a obedecer e desafina. Dá vontade de lhe dar uma tareia e não se pode. Mas tudo acaba em bem.

Como é viajar com a guitarra?
É o pior que possam calcular, porque nunca a largo.

Nunca?
Nunca. Sempre agarradinha contra mim. Também por isso só levo uma. Se com uma é complicado, o que seria com duas. Nem quero imaginar.

Mas não é um instrumento que possa comprar-se em qualquer lugar.
Estou sempre a bater na madeira. Se uma corda partir no início do concerto é duro. Conforme a tensão da guitarra vai cedendo, surge a desafinação, é doloroso, os nervos não aguentam. Nunca me aconteceu e ando sempre com o credo na boca. A única pessoa que podia mudar a corda em pleno palco era Carlos Paredes. As pessoas até achavam graça porque ele ia explicando os vários passos do processo.

Nas viagens de avião, as medidas de segurança não ajudam. A guitarra segue num lugar de passageiro ou vai no porão?
Na viagem de ida raramente há problema. A TAP facilita. O pior é o pessoal de terra do país onde aterramos. Recentemente, tive em Itália esse problema. A guitarra, que por acaso era uma mais velha, de trabalho, veio no porão e, apesar de seguir com o carimbo de frágil, a caixa chegou aberta e toda estragada. A guitarra salvou-se por um triz. Por isso, não me dá grande prazer ir ao estrangeiro. Gosto pela pessoas, claro, mas a angústia de que alguma coisa aconteça à guitarra é insuportável. Prefiro não ir.

Com quantas guitarras trabalha?
Duas: a de concerto, conheço-lhe as manhas e ela conhece a minhas, e a de trabalho, em madeira menos nobre mas que tem um bom som. Ambas são do mestre Gilberto Grácio.

Quanto custa uma guitarra de concerto?
A minha guitarra é feita de pau-santo, madeira nobre, e comprei-a há bastantes anos. Custou, na altura, cerca de 3000 euros.

Os instrumentos são uma extensão corporal. Num guitarrista em particular, porque abraça a guitarra?
Percebe-se que é essa extensão vendo, por exemplo, o [Mário] Laginha. E, contudo, o piano não está tão próximo do pianista quanto a guitarra do guitarrista. Sim, num guitarrista, em particular. Somos os únicos músicos que tocam com o instrumento colado ao coração.

Quantas horas pratica por semana?
Duas a três horas, não mais. Deveria trabalhar cinco ou seis horas, repartidas, mas a vida não mo permite.

Tem um seguro para as mãos?
Nunca fiz, e por displicência. Mas tenho cuidado com as unhas. Citando a Rainha de Inglaterra, o Carlos Paredes tinha umas unhas de marfim. Eu não. As minhas são fracas e partem-se muito. Unhas de gel ou as postiças – que uso – são alternativas. O Carlos Paredes, quando tinha problemas, ia fazer as unhas ao Ayer. Abriam uma exceção para ele. Depois ia experimentá-las para a zona da lavagem das cabeças. Era muito engraçado.

O seu mais recente trabalho, ARGVS, editado em maio, é uma viagem pelo Mediterrâneo, pela Antiguidade, uma odisseia e um desafio à guitarra portuguesa, que acompanha o cruzamento de culturas e de sonhos. Uma terceira via na guitarra portuguesa?
Eu não tinha grande saída. O trabalho anterior, Meditherranios, resultou muito bem, foi um som diferente e surpreendente. A faixa com o Mário Laginha ficou muito bem e as pessoas queriam saber o que eu faria a seguir. Perante a tela em branco fico angustiada. Repare: eu não faço fado, nem sei fazer. Não acrescento nada ao fado nem à guitarra de Coimbra. Essa estrutura está completa e, portanto, esse não podia ser o caminho. No Meditherranios, consegui encontrar uma sonoridade feliz. ARGVS é mais complexo. É o resultado de uma visão sobre um mundo de sofrimento e sacrifícios, mas também de um mundo onde se esperam saídas e desafios novos. Quando o comecei, a Europa, nomeadamente os países do Mediterrâneo, começavam uma crise económica terrível. Mas também tem o outro lado: o de uma forma de viver a vida como só o Mediterrâneo a sabe viver e que pode ser uma lição para outros povos. É um disco de partilha, tal qual o modo de vida mediterrânico. ARGVS, o cão de Ulisses, o seu companheiro leal até ao fim da vida, os sentimentos, os afetos, tudo é importante. Muitas histórias entrelaçadas que pretendo que sejam «lidas» quando ouvem a minha música.

Tem sido bem recebido?
Muito bem, estou muito feliz. Nestes tempos difíceis, de crise, está a vender muito bem, sinal de que é possível fazer um disco diferente. Esse era o meu desafio. Há na guitarra portuguesa uma técnica que é de Lisboa ou de Coimbra. Eu tento descobrir uma outra forma de a tocar mantendo sempre aquele lirismo tão bonito, exclusivo da guitarra portuguesa.

Foi a primeira mulher a gravar com guitarra portuguesa, um instrumento que tem uma relação complicada connosco. Porquê?
Em Coimbra, a guitarra é, de facto, um instrumento profundamente masculino. Durante algum tempo, acreditei que as mãos das mulheres não eram para a guitarra portuguesa. Quando se toca guitarra de Coimbra, Artur e Carlos Paredes fazem obrigatoriamente parte do reportório, o que obriga a muito virtuosismo mas também a muita força: o instrumento ganha uma força danada, quase explode. Até conhecer em Coimbra um guitarrista capaz de tocar maravilhosamente com mão mais pequena do que a minha, comparava a minha, pequena, com a de Carlos Paredes, enorme, e defendia-me muito. A partir dessa altura, acabaram-se as desculpas. De qualquer maneira, penso que a mulher tem uma forma diferente de olhar as cordas e o instrumento. Seja homem ou mulher, quem não for capaz de compor tem poucas alternativas. Em Coimbra, o trabalho está feito. Resta tocar com mais ou menos virtuosismo.

Começou a tocar guitarra portuguesa em 1997, antes disso tocava a clássica. Foi uma passagem difícil?
Embora sejam do ponto de vista técnico completamente diferentes, os calos na mão já lá estavam.

Em Canção para Carlos Paredes, que faz com Miguel Carvalhinho, está muito da guitarra de Coimbra. A terceira via ainda não se fazia sentir.
Sim, isso é verdade, embora com uma sonoridade mais doce. Aquelas foram as músicas que Carlos Paredes me ensinou. Foi precisamente nessa altura que percebi que se impunha uma rutura, havia que seguir o meu caminho. E tive de fazer o que nunca imaginei – enveredar pela composição. Se uns meses antes me dissessem que ia compor o Meditherranios, não acreditava. Achei que não era capaz e entrei em depressão. E foi assim também porque já estava acomodada. Mas fiz porque tinha de ser.

Preguiçosa com o talento?
O Luís [o editor e atual companheiro, Luís Nazaré Gomes] diz que sou um bocadinho. Sim, é capaz de haver um pouco disso. A necessidade de fazer coisas novas é muito complicada, sobretudo quando falamos de um instrumento muito ligado a uma tradição, seja a coimbrã ou a de Lisboa. Carlos Paredes cortou com o pai e criou o seu estilo, mas para um génio da composição com tal destreza de mãos é fácil. Para mim, não. Sabia que tinha de fazer diferente. Decidi compor e, julgo, consegui. O caminho que tracei é muito solitário, duro, nada comodista. Tanto para «fora» – porque se trata de uma mulher que toca guitarra, mas não fado – como para mim – porque tenho de estar sempre à procura de frases novas. Quando digo a algumas amigas que cada disco é diferente do anterior, o que elas me dizem é «pois, tinha de ser».

Sabendo que inevitavelmente será comparada ao mestre, como parceira e companheira de Carlos Paredes durante muitos anos, parte de uma fasquia muito alta. Também é isso?
É isso mesmo. Esse é o peso que carrego. Por mais diferente que seja o meu trabalho, haverá sempre quem pense «isto vem do Paredes».

Lembra-se da primeira vez que o viu e ouviu?
Em finais de 1983, já eu tocava guitarra clássica e estava ele a ensinar um amigo a acompanhá-lo, numa alternativa ao Fernando Alvim. Sabendo disso, disse a esse amigo que gostava muito de conhecer o Carlos Paredes. Quem não gostaria? Foi assim.

Primeira impressão?
Uma imensa simplicidade e uma enorme gentileza.

O que, curiosamente, pode ser muito intimidante.
No caso dele, nada. O Carlos Paredes tinha a capacidade de estimular os jovens. De tal forma que pouco depois, por impossibilidade do Alvim, convidou-me para o acompanhar.

Tinha 25 anos e ele 58 anos. E era o mestre. Como reagiu a novata?
Eu já fazia muitos acordes por isso não foi difícil apanhar os que ele me ia dando. Claro que não ousava fazer um acorde da minha imaginação, mas ele tinha a capacidade de pôr os outros à vontade. A situação era cómoda, confesso. Ele pisava o palco e eu estava ali a coberto dele.

O convite foi a certificação do talento da miúda.
Também isso. Bastava estar ali sossegadinha.

E quando alguma coisa não corria bem?
Olhava imediatamente para mim. O mais certo era as pessoas pensarem que fora um erro meu. Mas quase sempre era porque ele trocava o guião. E aquele gesto de olhar significava «fiz mal». Por vezes, sabe Deus o quanto ficava irritada, mas a solução para esses desacertos treina-se. E o Carlos Paredes era avassalador. Quando saiu Danças para Uma Guitarra, num concerto com o Ballet Gulbenkian, no final, várias pessoas mal sabiam comentar o bailado. Só viram o Carlos Paredes.

Avassalador para si, também.
Não diria avassalador. Com ele tudo era muito tranquilo. E eu sentia que estava a cumprir uma missão. Ele era um menino grande.

Mas que obedecia?
Que felizmente obedecia. Precisava de certos cuidados. Quando se compõe e trabalha de forma muito intensiva, descer à terra pode ser doloroso. Ainda mais quando se tem a genialidade de Carlos Paredes. Por isso, custava-lhe muito realizar as tarefas do dia-a-dia. Aí entrava eu. De outro modo ele teria tido muita dificuldade em viver neste mundo. Se para mim foi avassalador? É relativo. Compreendi que tinha ali uma missão e cumpri essa missão até ao fim, como pude e com muito gosto.

O que lhe trouxe essa relação?
Eu entrava no palco praticamente pela mão. Era muito confortável. O primeiro plano não era meu. E ele entrava sempre tranquilo. Estava ali, alvo de aplausos, com a mesma serenidade com que via o pano baixar e o regresso à normalidade do dia-a-dia. Aprendi com ele essa lição. Também aprendi com ele a respeitar todos os públicos. Não distinguia entre tocar na Ópera de Frankfurt ou na mais pequena freguesia de Lisboa. Aprendi com ele a não dar muita importância aos elogios – ele até os sacudia – e a trabalhar, se necessário, em adversidade. Com dores, por exemplo. Foram várias as vezes que ele subiu ao palco com dores. Muitas.

Ele tinha noção da sua própria genialidade?
Nunca me disse isso. Dizia apenas: «Sei que não sou nenhuma porcaria.» E ouvi-lo dizer isto era já, para mim, extraordinário. É uma das frases que me acompanham.

Qual foi o maior elogio que ele lhe fez?
«Parece que compreendes e sentes a guitarra do meu pai.» Sei também que se sentia muito confortável com o meu acompanhamento. Sabia que eu estava sempre lá, no tempo dele.

Uma década depois de se conhecerem, ele adoece. Tinha apenas 35 anos. Acabava uma década feliz?
Absolutamente. Um período de ouro em que corri o mundo. Julgo que só não fomos à Austrália. E conheci o mundo pela porta principal, porque todos o estimavam e respeitavam.

Seguem-se 11 anos de doença. Como resistiu a essa década (dos 35 aos 45 anos)?
Onze anos de uma doença muito complicada. Percebi isso mesmo quando o professor Lobo Antunes me disse que eu teria de ter muita coragem porque não ia ser fácil. Não foi e espanto-me por ter conseguido aguentar. Ou melhor, consegui porque ele estava num local muito bom, onde lhe proporcionavam a máxima qualidade de vida e porque fui rodeada por amigos que ajudavam muito. Caso contrário, teria sido impossível. Penso muito nos doentes que não podem ter as condições que ele teve e nas respetivas famílias.

Ele apercebeu-se da doença que tinha?
Não sei dizer-lhe. Sei, sim, que no tempo da doença era uma pessoa em paz. E tal como sempre, desligava de tudo quanto pudesse incomodá-lo. Quando não queria ver alguém fechava os olhos. Aconteceu com Amália, por exemplo, quando ela o foi visitar. Acontecia por vezes quando iam tocar para ele. Fechava os olhos e apagava.

Tratou-o sempre por «você»; ele sempre respondeu por «tu». Foram companheiros durante 20 anos. Além da genialidade musical, o que encontrou nele?
A delicadeza e a força; uma pessoa tímida, um homem sensível e muito culto, capaz de dar à minha vida um sentido que até então eu não conhecia – o de descobrir um mundo totalmente diferente daquele que era o meu até então. E depois, a cultura dele. Creio que tudo isto junto exerce um fascínio sobre uma mulher. Era ainda muito delicado. Com ele tive acesso a tudo o que havia de melhor na relação com os outros, sobretudo em palco, que era o que eu mais gostava de fazer. Foi uma grande paixão. E com ele também pude realizar plenamente a minha paixão pela música.

Essa paixão pela música começou quando?
Muito miúda já tocava ferrinhos no infantário e já a professora de Música notava o meu jeito.

Há na família uma tradição musical?
Do lado do meu pai, quando os irmãos se juntavam, faziam-se serões engraçados – um tocava piano, outro tocava violino, outro tocava viola, outro cantava. Também tenho primos que são professores de Música. Mas de todos quem mais bateu o pé fui eu. O que a família esperava era que me formasse em Direito. Ainda fiz o curso, mas percebi que tinha de seguir Música. Já tinha passado pelo Conservatório e já tocava guitarra clássica, que comecei por aprender ainda andava no Sagrado Coração de Maria, onde fiz o liceu. Mas para o meu pai, um músico estava destinado a uma vida de miséria. E olhe que não está longe da verdade.

Que recordação tem de si própria enquanto criança e adolescente?
Muitas e boas recordações. Nasci numa família tranquila, equilibrada, pais normais, com um irmão mais velho. Mãe doméstica, pai agrónomo, nunca me faltou nada, fui até demasiado protegida por pais supercatólicos. A vida não me trazia dificuldades, fui sempre realizando as pequenas coisas que gostava de fazer. E a música foi o caso mais sério. Quis aprender piano mas a minha mãe travou porque isso implicava ir para o Conservatório. Quando os meus pais me ofereceram uma guitarra, tocava de ouvido Beatles, Cat Stevens e o que se ouvia na altura. Percebi que era por aí, mais até do que pela exuberância do piano. No liceu, tive as primeiras aulas de viola e entrei no Conservatório, que abandonei quando conheci o Carlos Paredes; tornara-se inconciliável com tantas viagens.

Praticamente, acompanhou apenas Carlos Paredes. Mas como solista é possível vê-la a trabalhar com pessoas que lhe mereçam pouco apreço pessoal?
É emocionalmente complicado trabalhar com uma pessoa com quem se está, por exemplo, em conflito. Mas isso acontece mais ou antes ou depois, no palco, esquece-se.

Trabalhar com o companheiro também nem sempre deve ser fácil. Aconteceu-lhes levar os problemas pessoais para o palco?
Carlos Paredes e eu nunca nos zangámos seriamente, posso até dizer que nunca discutimos. Mais por «culpa» dele, que evitava conflitos fosse de que espécie fossem, com quem quer que fosse. Tínhamos um único conflito, que, por sinal, me punha fora de mim: as recusas dele em repetir os extras. O público pedia e eu pedia «toque mais uma». E ele, que não. Eu insistia e ele teimava. No final, cedia e até gostava. Certa vez, num concerto em Bruxelas, o empresário António Pinho, sabendo-o louco por McDonalds, arranjou um argumento de peso: «Carlos, sem extra não há Big Mac.» Entra então para fazer o extra, mas a resmungar. «Chantagistas.» Lá está: um menino.

E nas improvisações?
Esse era o segundo momento de tensão, mas aprendi a não fazer nada. Deixava que ele fosse por ali fora, durante o tempo que quisesse. Quando voltasse à música, eu estaria lá. É claro, ficava um bocado enervada, mas no final ele pedia desculpa: «Entusiasmei-me.»

Hoje, é a vez de o Gonçalo Lopes (que a acompanha a clarinete) ficar nervoso?
Como sei o que é improvisar tão bem, não improviso. No mínimo, evito, receio que talvez deva alguma coisa à minha educação contida. No entanto, como a minha música é muito intuitiva, o Gonçalo já está mentalizado. Vai para onde eu for. Pode haver momentos de tensão – e já os tive com o Gonçalo –, mas no palco tudo se dilui. Acabado o espetáculo, tudo duplica e triplica.

Começa a compor já aos 50 anos. Desafia-se a solo também por essa idade. Nunca pensou sair da asa de Paredes mais cedo?
Nunca. Nunca passou pela minha cabeça nem pela dele. Como nunca pensei que fosse tão duro o depois. A Canção para Carlos Paredes, trabalho que lhe dediquei, não foi bem aceite.

Que explicação encontra?
Por tocar algumas das músicas de Carlos Paredes, e daí ter feito um disco, talvez se tenha pensado que estava a aproveitar-me dele para sobressair. Na altura, esse raciocínio chocou e magoou-me, mas hoje até acho que essa crítica me ajudou a criar e a compor coisas novas. Acabou por ser excelente, tive de lutar por mim.

Sem Carlos Paredes teríamos Luísa Amaro mais cedo ou sem ele nada disto teria teria sido possível?
Olho para trás e não sei dizer-lhe. Gosto de pensar que tudo seguiu o rumo certo, no tempo certo.

Como decorre o seu processo criativo?
Quando não sei como preencher a tela vazia, vem a angústia. No início, é um trabalho completamente solitário, estou em casulo. Um músico clássico começa logo pela escrita. Eu não. Quando oiço uma frase musical interessante gravo-a, e só depois, num processo demorado e doloroso, lhe dou seguimento. Nessa fase, deixo o trabalho a repousar, talvez consiga chegar a bom porto num curto espaço de tempo. Ou não. A música vai andando e quando ela já é qualquer coisa, mas que eu ainda não sei bem o quê, mostro-a ao Luís [Nazaré Gomes]. Ele tem um sentido estético musical muito desenvolvido.

Tal como Carlos Paredes foi o seu «menino grande», é, hoje, a menina grande do Luís, o companheiro?
Sou, completamente. Repete-se a história, com uma diferença: ele é muito mais duro comigo do que eu fui com o Carlos Paredes. Um dia uma amiga perguntou ao Carlos Paredes se no palco também mandava eu. Fez de imediato um gesto de recusa como a dizer «aí quem nada sou eu».

De volta ao processo criativo: o Luís Nazaré Gomes é um crítico difícil?
É um crítico duro. Por vezes, ouve o que está escrito e diz-me que com aquele material não vou dar a parte alguma. Eu fico muito zangada e fecho a música por uns tempos. Verdade seja dita: faço bem porque quando mais tarde volto a ela, descubro, em regra, que afinal ele tinha razão. O Luís é o maior defensor de um som próprio e de uma linha melódica distinta. Ele dá muito valor ao caminho que já percorri e que eu, muitas vezes, julgo que não é nada de mais. Por exemplo, está sempre a recordar-me que o produtor da Björk, Eumir Deotado, é um grande fã da minha música Jardim da sereia. Mais tarde, já em fase final, mostro o trabalho a um amigo de Coimbra porque sei que não faz favores a ninguém. Se ele disser que tecnicamente o trabalho não está bem, fico um pouco descoroçoada, mas mudo. Estas opiniões fazem bem, obrigam-nos a fazer outra coisa. O pior é quando não sabemos que coisa é essa ou achamos que não temos mãos para isso.

Medo do fracasso, pouca autoconfiança?
Não tenho muita. Raramente digo «isto é assim», apenas quando a música está pronta e gosto de a ouvir.

A profunda modéstia católica incutida num colégio de freiras?
Tem tudo que ver com isso, sim.

Dos seus, qual é o disco que mais ouve?
Gosto muito do Meditherranios. Foi um disco feliz, tranquilo, e de vez em quando sabe-me bem ouvi-lo de novo. É um disco que convida ao relaxe. Gosto sobretudo da música que gravei com o Mário Laginha. Fica a pairar no ar. O ARGVS é mais denso, é mais difícil, até porque tem voz. Mas ainda não tenho dele o distanciamento suficiente.

Em casa, ouve que tipo de música?
Música antiga, polifonia, música barroca e jazz.

Além do Mário Laginha, com quem mais gostaria de fazer «parceria musical»?
Antes de mais, gostei muito de trabalhar com o Laginha. É uma boa alma, generoso, tranquilo. Gosto muito do Carlos Barretto com o contrabaixo, se bem que isso levar-me-ia a um outro tipo de linguagem de que não sei se sou capaz. Gostava também de aprofundar o trabalho com o António Eustáquio. O António tem uma enorme energia positiva, leva a boa disposição para o palco. Em palco nunca tinha encontrado ninguém assim.

É uma mulher positiva?
De vez em quando vou ao lado negro, mas, sim, sou positiva e bem-humorada. Humor negro.

A partir do lançamento dos discos a ansiedade passa?
Com o Meditherranios foi assim. Antigamente, não tinha consciência do drama de lançar um disco. Com ARGVS senti essa angústia: será que vai correr bem? E com os anos tenderá a piorar. Neste momento ainda estou a digerir o ARGVS.

Segue-se a fase dos concertos. A Luísa conversa com o público.
Aprendi com o Carlos Paredes, que comunicava com o público de uma forma muito interessante. Sem superioridade ou paternalismos. Nessas conversas dele com o público assisti a coisas extraordinárias. Contava as histórias dele, eu conto as minhas. E gosto de olhar para o público. Em concertos, peço que, de vez em quando, acendam algumas luzes para eu poder ver as pessoas.

Como reage se um telemóvel toca durante um concerto?
Já só sorrio e abano a cabeça. É que calha sempre no momento mais suave da música. É impressionante.

Alguma vez pensou deixar de tocar?
Muitas vezes. Um músico tem uma profissão dura e incerta, sobretudo quando há contas para pagar. É muito difícil viver só da música, e nessas alturas dá-me vontade de largar tudo.

Imagina-se sem música?
Não, não seria capaz de viver sem música.

PERFIL
Nasceu no Congo, em 1958, estudou Guitarra Clássica no Conservatório Nacional de Lisboa e, mais tarde, em 1983, com a guitarrista argentina María Luisa Anido. Um ano depois, começou a tocar com Carlos Paredes (1925-2004), que acompanhou em guitarra ao longo de uma década. Viajou com o mestre da guitarra portuguesa por todo o mundo, ao mesmo tempo que frequentou o Curso Internacional de Guitarra em Castres (França), com o guitarrista argentino Roberto Aussel. A partir de 1996, começou uma carreira como compositora de guitarra portuguesa. Realizou vários concertos no país, além das dezenas de espetáculos de apresentação do trabalho Canção para Carlos Paredes, de 2004, o primeiro álbum. Destaques para o espetáculo com a Orquestra Académica do Porto, sob direção do maestro António Saiote (2001), o concerto de jubileu do cardeal-patriarca de Lisboa (2003) e a participação no Festival de Lisboa, no Festival MED de Loulé e no Festival Islâmico de Mértola, em 2007. Em 2009, editou Meditherranios e, em maio deste ano, ARGVS, o terceiro original em nome próprio.