A viagem da bicicleta invisível

Esta é a história de uma bicicleta de dois lugares, em que um italiano cego correu, há 35 anos, o Giro d’Italia. E de como ficou a ganhar pó até ser comprada por Gonçalo Bettencourt num leilão na internet. Agora voltou à estrada, para que as crianças invisuais do Centro Hellen Keller, em Lisboa, pudessem experimentar pela primeira vez a sensação de pedalar.

Está um dia frio mas luminoso de me­ados de dezembro, perfeito para um passeio a pedal. Para Maria Moita, no entanto, é um suplício. A miúda de 13 anos está assustada. Nunca andou de bicicleta. Com a ajuda da mãe, lá sobe pa­ra o selim traseiro da Chronos Tandem ama­rela que Gonçalo Bettencourt estacionou de­baixo da Ponte 25 de Abril, junto ao Tejo. Não consegue viajar mais do que uma vintena de metros. Maria é cega, o corpo não está habi­tuado a deslizar ao sabor do vento, mesmo que saiba que o veículo tem condutor. Sente-se a voar no escuro e tem a voz embargada de ter­ror. «Não», grita, «não, não, não». Mas quando desmonta e regressa a terra firme, atira, para espanto de todos: «Foi espetacular.»

«Não me sinto acompanhada, eu sei que vou segura mas tenho muito medo de cair.» A mãe insiste, «tens de continuar a tentar». Para os pais de uma criança invisual, educar para a autonomia é tudo. «Uma criança cega nunca corre, não tem coordenação muscu­lar porque não se pode pôr à prova», diz Sofia Moita. «Mas temos de ajudá-los a superarem–se.» Uma bicicleta não é só uma bicicleta.

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A história desta Chronos amarela, uma Tandem de dois lugares, é toda uma viagem à invisibilidade – e à sua superação. Foi fa­bricada em 1979 por uma empresa familiar italiana, para que os primeiros ciclistas ce­gos pudessem participar no Giro d’Italia. A marca há muito que desapareceu, mas este exemplar sobreviveu escondido numa ga­ragem de Turim, até ser resgatada por um colecionador e ser posta à venda num leilão da internet. «Certificaram-me de que esta correu mesmo o Giro no início dos anos oi­tenta. Tinha um condutor que via a estrada na frente e um invisual a pedalar atrás», diz Gonçalo Bettencourt, diretor de uma agên­cia de comunicação que há muitos anos tem uma paixão por bicicletas. Esta versão da modalidade haveria de se tornar despor­to paralímpico, nos Jogos de 1988, em Seul.

Gonçalo decidiu fazer o seu lance. Arre­matou-a em fevereiro de 2013, por 460 eu­ros. «Há dias vi outra, que foi levada por dois mil euros e não tinha sequer corrido em com­petição. Mas a que eu comprei precisava de um grande trabalho de restauro e demorou mais de um ano até tê-la pronta.» Traçou o objetivo desde o início: haveria de usá-la pa­ra um projeto de solidariedade com crianças cegas. «A nenhuma criança deveria ser nega­da a oportunidade de andar de bicicleta. Te­nho amigos na família com crianças invisu­ais, que estudam no Centro Helen Keller, e pensei que poderia trabalhar com eles.»

Contactou uma oficina em Telheiras, a Bi­ke Check, e pediu parceria. No dia em que a Chronos chegou, em junho do ano passado, o mecânico Tiago Baptista dizia à Notícias Ma­gazine que tinha ali trabalho para seis meses. Acabou por demorar mais de um ano. «Puse­mo-la uma semana de molho em desengor­durante, tive de confirmar cada rosca de ca­da estrutura.» Mas o principal problema seria encontrar peças compatíveis com um mode­lo descontinuado há mais de trinta anos. «Desenferrujámos, pintámos tudo, forrámos os selins. Tivemos de encontrar novos espigões, correntes, pneus. Até a caixa de mudanças e um dos guiadores.» Trabalho fora de horas, pro bono. No final de novembro deste ano, a bi­cicleta estava pronta para voltar à estrada.

Agora o veículo é amarelo, um tesouro vin­tage. «Tem uma circunstância raríssima», diz Gonçalo Bettencourt. «O facto de ter si­do criada de raiz para ter dois lugares e pa­ra ciclistas invisuais. A maior parte das Tan­dems são adaptadas de bicicletas normais.» O passo seguinte foi contactar o Centro Helen Keller, que aceitou de imediato a ideia. «É im­portante normalizarmos as brincadeiras», diz Joana Silvestre, professora de Ensino Es­pecial na instituição. «A bicicleta é capaz de ser o maior símbolo de conquista de autono­mia. Começamos com o triciclo, passamos para o veículo com apoios de rodinhas e de­pois a bicicleta de duas rodas. Ter essa expe­riência é um estímulo tremendo, porque até aqui isso estava-lhes vedado.»

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Nos primeiros anos de ensino, ensinam os alunos a ter perceção do espaço, em casa e na escola. Há depois técnicas de bengala, para conseguirem movimentar-se na rua. A par­tir do sétimo ano, começam a aprender a fa­zer o percurso entre casa e a escola sozinhos. «O mais difícil numa criança cega é conse­guir estimular-lhe a mobilidade. A bicicleta é um símbolo de tudo isso.»

Em 2015, nas primeiras segundas-feiras de cada mês, cinco a seis crianças vão poder ex­perimentar andar de bicicleta junto ao Tejo. No total, o projeto Bike & See vai servir um pú­blico de 42 crianças cegas ou de visibilidade reduzida, sem custos. «Já fui contactado por mais instituições que também querem fazer este programa. E vou precisar de mais bicicle­tas e mais condutores, mas o retorno emocio­nal vale a pena. Temos de devolver à sociedade o que ela nos deu», diz Gonçalo Bettencourt.

Daí por uns minutos, João Fernandes, 14 anos, monta o banco traseiro da Chronos e vai dar uma volta junto ao Tejo, quase um quilómetro de pedal. O rapaz nasceu prema­turo, perdeu a visão na incubadora, e ouvir os irmãos falarem das bicicletas nunca mais se­rá um tormento. «Só me assustei nas curvas, porque o piso era irregular. Mas se pudesse fazia isto todos os dias. Pedalava por essas estradas todas que oiço falar na televisão. A CRIL e a A1 e a Via do Infante. Isso é que era bonito.»