
O tempo não é uma coisa linear. Nem sequer é uma coisa singular. Não há um só tempo. Não há uma só versão de tudo. Até pode parecer que estejamos todos aqui encurralados no mesmo tempo, ao mesmo tempo, mas se se pensar bem, há muitos tempos dentro do tempo que se diz singular.
Quando me sento à espera de alguém que nunca mais aparece, o tempo parece demorar-se, numa dança lenta de ponteiros na qual os minutos saltam de ponteiro em ponteiro com todos os cuidados de quem tem uma tarefa difícil a concretizar e a quer realizar sem falhas, nem quedas. Mas para quem se atrasa, o tempo escorrega por entre as frinchas dos ponteiros, intrigado com o que se passará entre os seus espaços e desaparece sem explicação.
Aprendemos na escola a distinguir estes dois tempos. Mas apenas aplicados à literatura. Como se esta não se relacionasse com a vida real. Há o tempo cronológico e o tempo psicológico. Das personagens, claro. Cada um de nós, personagem à procura do seu autor e do seu tempo, também os tem aos dois. Cada pessoa com o seu tempo psicológico, que destoa quase sempre do tempo cronológico, num desencontro permanente de tempos e ritmos e pausas. E notas.
Uma pauta caótica, sem chaves ou claves. Uma orquestra sem maestro, ou cujo maestro dá a escolher a cada um dos seus intérpretes o tempo em que quer viver. O tempo cronológico gostaria de acreditar que rege tudo. Compasso quaternário ou ternário, composto ou simples. Do princípio ao fim, sem mudanças. Linear, único. Objectivo. Quantificável. Mas não. Nesta partitura quem manda são as indicações, aquelas notas que se escrevem por cima da pauta e que sublinham as dinâmicas, os tempos fortes e fracos, as nuances interpretativas.
O intérprete do tempo somos nós. Entre o tique e o taque de cada segundo, quem manda somos nós. Como no swing do jazz, podemos atrasá-lo ou adiantá-lo sem nunca sair do tempo. Fazemo-lo de acordo com o que sentimos que a música pede.
É matemática intuitiva: fazer que o tempo que é igual para todos possa ser sentido e preenchido de formas diferentes e a passos diferentes por cada um de nós. Talvez por isso se diga que é precioso. Mas também é caprichoso. Quando o queremos lento, para aproveitar cada momento, foge-nos. Quando o queremos a passo rápido, para fugirmos nós de momentos menos bons, demora-se. Fica ali, a pairar, como que congelado.
Então, em que ficamos? Somos nós que mandamos no tempo, ou é o tempo que manda em nós? As duas coisas, penso. Os momentos são tempos que nos pertencem, assim como os minutos são pertença do tempo. Imaginemos: no cinema, passa um filme de duas horas. Na sala ao lado, outro, da mesma duração. Num, quase nada se diz, em tanto tempo. Noutro, diz-se quase tudo.
Assim poderá ser o nosso filme: poderá dizer muita coisa em pouco tempo ou pouca coisa em muito tempo, sendo a duração a mesma. O conteúdo é que não. O conteúdo tem implicações no tempo. Deve ser isso. O conteúdo tem implicações na forma como o tempo se comporta. Então, o que há a fazer, nesta corrida contra o tempo, é virá-lo a nosso favor, criando conteúdo. Muito e muito rico. Tentarmos sempre fazer o melhor filme possível. O nosso tempo pode estar contado, mas a equação que usamos para chegar até ao fim é que vai fazer a diferença. Não se pode almejar menos do que uma obra-prima para a nossa vida.
[Publicado originalmente na edição de 2 de novembro de 2014]