A revolução está a passar por Lisboa

Notícias Magazine

Há cerca de 15 anos que ando a assistir a uma revolução. Sonhei toda a vida dizer isto, eu que falhei os anos 1960, o flower power, o 25 de Abril. Esta revolução é social, começou nos empedra­dos dos subúrbios de Lisboa e está agora a crescer nos palcos das dis­cotecas e das escolas de dança, nas rádios e nas grandes salas de es­petáculos. E é contada, nesta edição, pela reportagem que publica­mos. É a revolução da kizomba, de Lisboa para o mundo. Eu vi-a a chegar. Nos anos 1990, os gangues de miúdos dos subúrbios de Lis­boa aterrorizavam as autoestradas e levaram-me, a mim então jor­nalista do Expresso, a esses bairros às portas de Lisboa, Oeiras, Cas­cais e Loures. Eu ia em busca de histórias de crimes, assaltos, car-jackings e outras cenas violentas. Levava as indicações da polícia. E encontrava, a história. Os miúdos que, de noite, tomavam boleia forçada em carros rápidos de alta cilindrada – e sem turbo, avisa­vam, porque podia partir – eram gente que não podia ser aprisio­nada nas categorias mais tradicionais.

Eu fechava os olhos e eles eram brancos, pelos temas de con­versa, pela maneira de falar, pelo gingar lisboeta. Eu abria os olhos e eles eram negros. Eu pensava um pouco e eles eram o cruzamen­to de tantas coisas. Já não eram os africanos que tinham sido os pais, imigrantes, muitos ilegais, vindos sobretudo da Guiné e de Cabo Verde. Muitos não tinham qualquer ligação com África. E as roupas que usavam, os ténis, os brincos, as T-shirts largas, os bonés ao con­trário, as carapinhas desenhadas a máquina 3, ecoavam daquele continente apenas o que a cultura dread americana absorvera.

A cultura africana chegava-lhes através da cultura ameri­cana. Ouviam R&B, rap e outros sons urbanos. Não dançavam mornas e estavam-se nas tintas para as koladeras. E ouviam as mesmas músicas que os amigos brancos que, aliás, faziam à mes­ma parte dos gangues e se vestiam da mesma maneira. E dos outros, aliás, que nunca tinham participado em atividades crimi­nosas, mas viviam ali, nessa cultura de rua e de subúrbio ou bairro social. Se a sociedade portuguesa era extremamente estratificada e dividida racialmente, ali, nos subúrbios, não se via nada disso. Era a igualdade, a integração. A real.

Uns anos mais tarde, aconteceu mais uma reviravolta. A cultura dread, americanizada, suburbana, cruzou-se com outra, que, em África, ganhou peso económico e cultural: a angolana. Entraram os novos ritmos, o kuduro e a kizomba, e foi como uma espécie de fusão de origens. Cruzaram-se nas palavras em portu­guês, e tudo isso deu na revolução que tão bem explica José Moura, um dos quatro fundadores da Príncipe Discos, editora que profis­sionalizou muitos músicos que começaram nos subúrbios e agora têm fama internacional. «A kizomba explode agora porque o Por­tugal dos subúrbios, branco e negro, chegou à idade adulta.»

Chegou à idade adulta e massificou-se. Saiu dos subúrbios. Entrou no mainstream. Bô Tem Mel, de Nelson Freitas, esteve 42 se­manas seguidas no top 50 de singles portugueses. O álbum A Dor do Cupido, do angolano Anselmo Ralph, chegou ao primeiro lugar no top de vendas – e foi a primeira vez que isso aconteceu com um artista africano. O videoclip de Não Me Toca, de Ralph, vai em mais de 36 milhões de visualizações no YouTube. Como diz o Ricardo J. Rodrigues na sua reportagem, a maior parte dos artistas africanos faz vídeos nos Estados Unidos, canta de óculos escuros, camisas apertadas, joias no pescoço e nos dedos. Cultiva a imagem do romantismo africano, a mesma, de rapaz malcomportado, que tinham os jovens que conheci nos subúrbios há 15 anos. É essa afri­canidade suburbana que nasceu e cresceu em Lisboa, como diz Kalaf, dos Buraka Som Sistema, não é africana mas tem origem em África, não é branca, porque é negra e mestiça, não é tradicional porque é contemporânea, mas, no entanto, vai beber tudo à história, e aos cruzamentos que os portugueses andaram a espalhar pelo mundo. E é, definitivamente, a menos segregadora e mais integradora. É uma autêntica revolução. E passa-se em Lisboa.

Publicado originalmente na edição de 16 de novembro de 2014