Quando cheguei à Praça de Saint-Michel tinha 20 anos e o meio salário mínimo mensal com que desembarcara nessa manhã, outono de 1969. Na gare de Austerlitz gastara o dinheiro mais pequeno no guia das ruas e metro de Paris. Não tinha documentos e tinha três endereços. Todos na margem esquerda – Paris começou a ser-me desenhada pela maneira mais simples, dois lados atravessados pelo rio. Como tinha a eternidade e pouco dinheiro, andei a pé. No primeiro endereço, disseram-me que as aulas tinham começado e o professor já regressara a Lille. Lille era longe? Era, despacharam-me, ele só voltaria pelo Natal. Que me importava o percalço, parti para a segunda morada, também de um professor universitário interessado em Angola. Prédio burguês, com campainha muda. Toquei para a porteira que se revelou ser portuguesa, o que pensei ser coincidência extraordinária. Enxotou-me. O saco de plástico com que eu andava, talvez… Rumei, então, para o derradeiro endereço, Praça de Saint-Michel, sabendo que o dono só regressaria depois do trabalho.
Reparo, agora, que não era hábito levarmos números de telefone. Ou talvez as pessoas só os dessem aos mais íntimos. Afinal, eu não passava de amigo de amigos, com interesses comuns, mas só para estrangeiros que nos visitam, não quando nos recebiam em casa. Porém, as portas fechadas não me inquietavam, só me atrasavam a curiosidade por amanhã. E amanhã importava pouco. Entretanto, estava ali, o Sena corria nas minhas costas e eu olhava a fonte. Num nicho, São Miguel matava o diabo sobre uma rocha de onde saía a cascata, alimentada ainda por dois dragões que jorravam água. A fonte estava num arco triunfal encostado ao prédio que juntava o Boulevard Saint-Michel e a Rua Danton. Contei as estátuas, eram nove. Voltei os olhos para a praça, procurava as mulheres, as mais velhas, velhas mesmo, de 40 anos. Não sei porquê, ou sei, era muito cineclube com Annie Girardot e Jeanne Moreau.
A fonte era virada a norte e ao entardecer dei por mim a buscar no bolso a última morada. Na praça, um sexto andar, li. Já era suficientemente parisiense para saber o significado: era o meu contacto mais pobre. Olhei para o prédio, uma papelaria de toldo amarelo, Gilbert Jeune, ao lado dum portão, o n.º 4, imponente. Um primeiro andar de varandas de pedra – de facto, o segundo do prédio, pois havia uma fileira de sobrelojas –, outro andar burguês, o terceiro, o quarto com varanda corrida de ferro forjado e já nem todas as janelas altas com reposteiros, e, enfim, o quinto andar com janelas que já ficavam sobre o telhado de zinco escuro. Então, e o 6.º andar? Nem isso me preocupou, já tinha quilómetros calcorreados para saber que na Paris de Haussmann nunca falha a chambre de bonne, o quarto de criada, no cimo do prédio. Estiquei-me e lá estava ele, marcado por uma claraboia cercada pelo cinzento do zinco e vidro devolvendo o céu de chumbo.
Abordei o meu hospedeiro ainda ele dedilhava o código do portão, adivinhei-o português. Ele sabia da minha provável chegada: «Sobe.» Pátio e escada das traseiras, o prédio todo tinha elevador, mas não as chambres de bonne. Corredor e parámos numa porta à direita. «Vê-se a praça?», perguntei, para fazer conversa. Que não, isso era à esquerda, o nosso era virado para as traseiras: «É pena porque nos quartos da frente, com um espelho metido pela claraboia, vê-se a fonte», atirou-me ele, um pouco vexado. O quarto era o quarto, dois metros por quatro. A nossa claraboia servia de geleira, ele foi buscar um moscatel e comemorámos a minha chegada. Vivi lá três meses.
Sei quanto me marcou pelo que me comovem as palavras que também dizem chambre de bonne e a sua janelinha: sótão, ático, mansarda, águas-furtadas, lucarna, lumieira, um amigo galego diz faiado, um francês comble… Comble? Mas isso não quer dizer também cúmulo, o máximo? Claro. Não foi o que me pôs sob os telhados de Paris?
[Publicado originalmente na edição de 2 de novembro de 2014]