As selfies entraram para o vocabulário de muitos. Antes de mais, para quem não saiba ou não domine o jargão das redes sociais digitais, uma selfie é um auto-retrato. Feito não com pincel, tela e tintas (e espelho), mas com um telemóvel inteligente. Na verdade, um smartphone, como a eles mais se referem. Só não o faço também porque a verdade é que, num texto que fala de gadgets, «social networking» e selfies, se cedesse facilmente à tentação do inglês, num instante a mancha gráfica encher-se-ia de anglicismos e ficaria a parecer um anúncio comercial de alguma marca com ambições internacionais. O chamado branding da coisa. Então, temos que a selfie será substituída pelo seu equivalente «auto-retrato».
Como dizia, a moda dos auto-retratos é evidente a quem tenha conta de Facebook ou Instagram e se dedique a passear por lá durante mais do que um minuto. Muitos dizem que são uma praga, uma clara prova de que a sociedade está mergulhada no mais puro egotismo e hedonismo. Que tirar muitos auto-retratos pode ser um sintoma de algum desequilíbrio emocional ou psicológico ou mental. Eu, que nunca consegui desenhar algo de que me orgulhasse, aproveitei a oportunidade única que as câmaras dos ditos telemóveis proporcionavam, praticando o auto-retrato. Não sinto que o faça por achar que sou matéria digna de uma obra-prima, mas por curiosidade, por achar engraçado saber exactamente qual a expressão que estou a fazer quando se carrega no clique e porque às vezes estou sozinha num sítio bonito ou a viver alguma situação engraçada e quero registar o momento, incluindo-me no mesmo.
Não nutro, portanto, ódio pela onda de auto-retratos. Alguns são interessantes, outros, nem tanto. Basta escamoteá-los de acordo com o nosso gosto e pronto. A verdade é que a forma como nos auto-retratamos pode mostrar uma parte de nós que não mostraríamos, caso fosse outra pessoa a tirar-nos a foto. Há algo de confessional que se revela, quer estejamos cientes disso ou não.
Bryan Lewis Saunders lembrou-se de desenhar auto-retratos sob a influência de diferentes drogas. Consoante a substância consumida, a leitura que fazia de si mesmo era diferente. A maior parte das vezes, o resultado é assustador e serve como um óptimo dissuasor a quem tenha curiosidade em experimentar qualquer droga que seja.
O que me deixou a pensar que até mesmo as nossas emoções e percepções combinadas poderiam levar a diferentes resultados de leitura. Quem somos e quem percepcionamos ser poderão ser coisas diferentes. Não só falando do nosso interior, subjectivo por natureza, mas também do nosso exterior, que deveria ser objectivo, porque é observável e medível a olho nu. No entanto, parece que o que vai cá dentro manda naquilo que vemos cá fora e o resultado mostra-se na leitura que fazemos do nosso rosto.
Numa outra experiência, uma marca de produtos de beleza urdiu uma campanha na qual pedia a várias mulheres que se descrevessem a um desenhador profissional. Ele faria o seu desenho apenas com base nas indicações dadas pelas próprias, uma vez que não as conseguia ver. Depois, um estranho segurava uma foto destas mulheres e descrevia-a ao desenhador. O resultado mostrava que na maior parte das vezes, o retrato descrito pelo estranho era mais preciso, mais bonito e mais feliz do que o retrato descrito pela própria mulher.
Não somos quem vemos e não nos vemos da mesma forma como os outros nos vêem. Pode ser que a moda dos auto-retratos nos possa ajudar a resolver este quebra-cabeças. Ou a complicá-lo mais um pouco. Porque depois do retrato feito, é preciso escolher o filtro certo para pôr no Instagram. E na vida.
Ana Bacalhau escreve de acordo com a antiga ortografia
Publicado originalmente na edição de 1 de junho de 2014