A arte da fugacidade que permanece

Notícias Magazine

Quando o nosso trabalho é feito em frente a um públi­co, tudo aquilo que acontece nesse período de tempo, concentra­do e finito, é intenso e intensificado pela adrenalina do momento. Um pouco como condensar toda uma vida numa performance de duas horas. Ainda para mais, a qualidade daquilo que é produzi­do depende em boa parte da participação do público que nos ob­serva e com o qual criamos, ou tentamos criar, uma relação, um vínculo emocional e estético.

Esse vínculo é aquilo que mais importa, em paralelo com a qualidade da expressão artística e musical. É um laço precioso, uma relação que queremos manter muito para lá dos concertos e daquelas duas horas. Mas muitas vezes, depois de termos dado e recebido tanto em tão pouco tempo, a sensação com que ficamos, chegados ao hotel ou a casa, é de vazio. Uma coisa tão intensa e tão fugaz, uma subida tão a pique tem uma descida igualmente verti­ginosa, uma espécie de contrário de tudo aquilo que sentimos em palco. Voltam as inseguranças e as incertezas.

Nunca esperamos que aquilo que fizemos tenha sido tão importante para os outros como foi para nós. Para mim, a música não é apenas a profissão que escolhi por demonstrar competên­cias e talento no seu desempenho. Eu preciso de fazer música pa­ra manter o meu bem-estar físico e a minha saúde mental. Sem ela, definharia. No meio de todo este turbilhão de coisas sentidas, esqueço, por vezes, o valor positivo que outros possam atribuir ao meu trabalho. Penso sempre que já esqueceram aqueles momen­tos breves em que nos juntámos porque a música nos juntou.

Mas, às vezes, sou confrontada com o valor que as pessoas atribuem à música que faço. Contam-me histórias pessoais. His­tórias felizes ou histórias tristes. Episódios de vida em que parti­cipei sem saber e em que pude ajudar mesmo sem saber que era precisa a minha ajuda. Os vínculos que se criam e se estabelecem através da música são bem mais fortes do que se possa pensar. De que outra forma se explica que uma voz, uma letra ou uma me­lodia possam ajudar alguém na sua vida? Ou de que outra forma se explica que a música esteja tão presente na vida das pessoas que acabe por se tornar uma figura cúmplice, um parceiro? Acaba por se tornar também uma companhia de todos os momentos e uma potenciadora de bons momentos em grupo.

Há qualquer coisa na essência da música que a torna, ao mesmo tempo, uma experiência pessoal e intimista e uma expe­riência partilhada, de grupo. A música aproxima-nos de nós e dos outros. No último mês, visitei duas escolas a seu convite, porque os alunos tinham feito trabalhos acerca da música da Deolinda. Uns eram alunos do 2.º ciclo, outros eram do 1.º. Os primeiros, com a ajuda dos professores, construíram um espectáculo baseado nas nossas canções. Pesquisaram acerca da banda e da música que fa­zíamos. Cantaram, criaram coreografias e dançaram. Fizeram roupas de palco que remetiam para o universo da banda. E, no fim, fizeram-nos perguntas. A sua alegria em mostrar-nos o que fize­ram com a nossa música, em ter-nos lá, com eles, emocionou-me. Os segundos pesquisaram acerca da minha vida, pegaram em três canções da Deolinda e mudaram-lhes a letra para contar o seu dia-a-dia. Nunca conseguirei agradecer-lhes plenamente pelo tem­po que me dispensaram, pela atenção e pelo carinho que mostra­ram. A única coisa que posso fazer é continuar a tentar criar mú­sica que consiga chegar até ao público que a ouve, abraçá-lo pela cintura e levá-lo a dançar ao seu compasso. Para sempre.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA

[Publicado originalmente na edição de 6 de abril de 2014]