«Já me chamaram o encenador das mulheres, mas isso são boatos»

Filho único de atores amadores, aos 5 anos já assistia a ensaios, fazia figuração, conhecia peças de cor. Tímido, reservado, mas epicurista, o encenador-figurinista-cenógrafo-pintor chegou ao Teatro Nacional São João, em 1996, a convite de Ricardo Pais. Treze anos depois, Nuno Carinhas aceitou o convite para o dirigir. Lisboeta no Porto, filho de mãe beirã e pai algarvio, «ponto de encontro entre o Norte e o Sul», tem um desejo: «Que a cidade, o público e os profissionais sintam que, em tempos difíceis, o Teatro São João foi um ancoradouro em porto seguro.

Tem muitas partes: cenógrafo, figurinista, ator, pintor. Quando é que percebeu que o caminho seria a encenação?
Sempre gostei de assistir aos processos, de estar dentro deles, das construções, dos lugares, das épocas. Sempre me interessou tudo o que contasse para a produção do espetáculo. Os meus pais eram atores amadores e assisti desde cedo a esses processos.

Contudo, começou pelas Belas-Artes.
Comecei a pintar cedo, era um pintor caseiro, um jovem ambicioso que misturava umas tintas. No Liceu D. João de Castro tive professores que me abriram a porta dos ateliers e partilharam comigo a «maneira de fazer» – e isso motivou-me. Por outro lado, os meus pais abriram-me os horizontes artísticos em diversas áreas, não só no teatro. Levar-me a museus e a exposições era um prazer para o meu pai. Os meus pais eram empregados de escritório. Não tinham uma ligação automática à cultura. A ligação vinha de um grande apego à leitura, à literatura. Tinham uma grande biblioteca. Tive muita sorte até porque como filho único tinha tudo à minha disposição.

Pelo teatro larga a pintura. Ou o pintor está sempre presente?
Quando desenho figurinos ou espaços, «isso» ainda lá está, sei que a própria maneira de pensar e de fazer – fazer, por exemplo, uma encenação por camadas. Neste momento, o teatro está à frente, mas a maior parte dos artistas poderá tocar várias áreas.

A vocação para várias artes começa na infância?
Recordo da infância uma vida muito normal. Havia uma componente física importante, gostava de ginástica, era até praticante obsessivo de natação, e de partilhar tempos livres com os miúdos do meu prédio, em Algés. Havia muito espaço, quintais, pátios, para brincadeiras. Lembro-me de sentir prazer ao ver os outros brincar com os meus brinquedos. Pré-voyeurismo, talvez.

Já então preferia implicar-se menos, para, à distância, ver melhor.
Julgo que sim. Seria um sinal.

 

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Com pais atores e tão ligados à cultura, frequentava espetáculos, assistia provavelmente a ensaios…
… sabia as peças de cor.

Quais? E participou nalgumas delas?
Sim, nas figurações. Em As Alegres Comadres de Windsor, de Shakespeare, ou em São João Subiu ao Trono, de Carlos Amaro.

Sentiu a censura. Apercebeu-se de que vivia numa ditadura?
No liceu tínhamos essa consciência. Por exemplo, conheci a Teresa Dias Coelho no D. João de Castro (mais tarde, já andávamos em Belas-Artes, ela seria presa). Percebia-se que era um tempo cinzento, difícil, calado, medroso.

Em casa falava-se de política?
Sim, de forma aberta mas com prudência (depois do 25 de Abril, a minha mãe entrou para o Partido Comunista, o meu pai era mais anarca, mais independente). Sabiam que corriam riscos. E os mais novos também o sabiam – quando no liceu nos pediam para distribuir panfletos ou jornais, tínhamos plena noção do perigo. Bastava perceber a forma como os contínuos vigiavam os alunos. Éramos pequeníssimos conspiradores, não era revolucionário nem filho de revolucionários. Tinha, porém, a consciência de que alguma coisa estava a passar-se ou iria, em breve, passar-se. Tivemos, no D. João de Castro, um movimento de jovens fascistas muito violento, de confronto físico, mesmo.

A adolescência fecha em vésperas do 25 de Abril. Um privilégio.
Pertenço à geração que tem esse marco fabuloso. Na altura tinha 19 anos, mas senti que me era dada a oportunidade de recuar cinco, seis, sete anos e voltar ao fulgor da adolescência. Muita gente terá sentido o mesmo. Foi-nos dada uma segunda oportunidade.

Em 1975, está na fundação de A Barraca, mas o teatro «a sério» começou antes do 25 de Abril. Como foi?
Fiz parte de um grupo no Primeiro Acto, em Algés, clube de tea-tro e também lugar de resistência. E o Jorge Listopad desafia–me, a mim e ao Samuel (músico que teve dissabores com a PIDE), para fazer parte do elenco de Platónov (Anton Tchekhov), no Teatro Maria Matos. Nós, caídos de paraquedas num elenco fantástico, fazíamos dois pequenos papéis que alternávamos todas as noites. O 25 de Abril dá-se com a peça em cena, e a partir daí passei a estar muito próximo do teatro. E os trabalhos foram aparecendo.

Quem se lembra de si desde essa altura define-o como tímido. Olga Roriz, que conhece um pouco mais tarde e com quem tem uma filha, refere a «aura de timidez».
Não gosto de falar de mim. A minha relação com os outros faz-se através do que faço e não necessariamente do que sou. De mim, posso dizer que já ouvi muito mais do que falei. Prestar atenção é, em mim, uma coisa muito importante. Raramente sou capaz de estar sem os óculos na cara. Não ser visto não me incomoda, pelo contrário, mas custa-me imenso não ver. Ver, ouvir, partilhar conversas, é o que me define.

Foi sempre freelancer. Este é o primeiro cargo institucional. Na altura e que o assumiu (2009), disse que se tratava do lugar certo para arriscar. O que arriscava?
Já não se tratava de fazer um espetáculo mas de abarcar uma instituição, programá-la, percebê-la e dar continuidade a um trabalho de serviço público. Por que era o lugar certo? Porque era o melhor teatro do país. E um dos melhores da Europa.

O melhor teatro do país porquê?
Porque há no Teatro Nacional de São João uma máquina muito bem montada, obra do Ricardo Pais e das suas equipas; porque as pessoas gostam muito do que fazem e isso é essencial; porque temos a noção de estar a contribuir para mostrar um determinado objeto no seu «esplendor»: trata-se de um lugar que acolhe bem e isso é sentido por quem cá passa, nacional ou estrangeiro.

Que balanço faz destes quatro anos?
Não temos parado. Vivemos uma espécie de festival permanente, com poucos recursos conseguimos fazer imensa coisa. Temos tido uma enorme diversidade, mantendo sempre a qualidade mas dando oportunidade a quem não dispõe de meios para avançar um pouco mais.

E como é a sua rotina?
Passei a viver no Porto, com um dia-a-dia muito cheio porque temos três casas e ando permanentemente entre elas. O meu escritório é no Teatro Carlos Alberto, no Teatro Nacional São João está a administração e a produção e a comunicação está no Mosteiro de São Bento da Vitória.

Encenador recorrente no TNSJ desde 1996, era já um nome familiar no meio teatral e cultural do Porto quando assumiu o cargo. Nos primeiros tempos, Ricardo Pais não foi bem recebido porque era visto como alguém «de fora». Como é a sua relação com o tecido teatral?
Não sou dado a trabalho de corte e normalmente estou pouco entrosado, mas sempre aberto ao diálogo com todos. Acerca do Ricardo, isso foram rumores sectários e alguma provocação.

Entendeu-se com Rui Rio?
Cruzámo-nos uma vez no Mosteiro de São Bento da Vitória, durante um congresso, não mais do que isso. Com Rui Moreira já me cruzei várias vezes, acho até que há uma simpatia mútua.

Figura polémica, o Rui Rio, e a sua política cultural camarária.
Quando cheguei já estava instalada essa aura de presidente com as costas voltadas para as artes, mas agora isso está ultrapassado.

Como é a relação da cidade com o Teatro?
Fantástica. Quando foi preciso, em meia dúzia de horas, a «cidade» organizou o abraço ao Teatro. As pessoas mobilizaram-se, e este sentido do património, este apego às suas instituições é uma das diferenças entre Lisboa e Porto.

Ricardo Pais disse que o São João em Lisboa seria impossível.
Ah, sim. Uma coisa é o Rossio e outra, bem diferente, a Praça da Batalha. São zonas com diversidades e procuras muito diferentes. Basta dizer que temos as casas cheias de estudantes durante todo o ano, sem necessidade de criar um horário compatível com a escola, por exemplo. No Porto sentimos essa apetência. Quando colegas estrangeiros me dizem que o público deles está envelhecido, tenho orgulho em dar-lhes um testemunho contrário. Quando se faz uma masterclass aparecem 80 estudantes e quando se faz uma conferência enche-se o teatro. Quer dizer, sente-se a ligação com as comunidades. E é também a diferença entre fundar um projeto de raiz ou abraçar uma instituição com décadas.

Há quem acuse o TNSJ de apresentar uma programação elitista.
Bem recentemente, na mesma noite, o Como Queiram, da Beatriz Batarda, encheu o Teatro Carlos Alberto; Coriolano, encenado pelo Nuno Cardoso, encheu o TNSJ e o espetáculo Madalena, pelo Ensemble, encheu o Mosteiro de São Bento da Vitória. Isto para mim é um prazer imenso. É sinal de que o TNSJ está vivo dentro da cidade do Porto, não é ficção.

 

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Que marca gostaria de deixar?
Gostaria que a cidade, o público e os profissionais sentissem que, em tempos difíceis, o Teatro São João foi um porto seguro.

Um teatro nacional deve servir que objetivos principais?
A defesa da língua é indispensável. De resto, está na lei orgânica do Teatro. Mas há outras: assegurar que todos os elementos do espetáculo têm o mesmo valor. É fundamental que o desenhador de luz ou de som, o cenógrafo ou o figurinista estejam ao mesmo nível e que o teatro seja sempre um laboratório de artes.

Que outros deveres de um teatro nacional?
Um teatro nacional deveria ter por obrigação alimentar grupos de atores, nem que fosse de temporada a temporada, que permitisse assegurar a manutenção de uma certa maneira de fazer.

Ou seja, deve ser uma espécie de exemplo da não precariedade.
Eu gostaria muito que fosse. É um objetivo difícil de atingir, ainda mais em tempos economicamente difíceis.

Nos últimos três anos, foi feita uma redução de 16 por cento nos custos fixos e o orçamento anual atual fica aquém dos cinco milhões de euros. Já foi de sete. Como tem lidado com a austeridade?
Com combatividade e imaginação, sem perder os objetivos da diversidade e da qualidade, com cumplicidades reforçadas.

Em contexto da crise, para onde vai o teatro português?
O teatro tem consigo uma capacidade de resistência e resiliência históricas. Quanto mais difíceis são os tempos mais acirrada fica a vontade de combater e construir. Essa nem sempre é a melhor maneira de consolidar um projeto e por vezes vê-se o trabalho ser cortado, amputado, sempre um mau caminho. Os políticos deviam perceber que não se pode tirar tudo de uma só vez. Há uma reserva de alimento individual e coletivo que tem de ficar, a bem do país e daspessoas.

Em tempo de depressão, procura-se o divertimento. O tempo do teatro, real, corpo a corpo, não afugenta público?
O teatro contraria o fechamento em nós próprios. E uma narrativa ao vivo, agarra-nos mais do que, por exemplo, a narrativa cinematográfica. Sim, há um corpo a corpo que é absolutamente do teatro e que pode ser duro. Mas a compensação não pode passar só pelo divertimento ou pela alienação da realidade.

Causas ou batalhas no teatro que quer ver vencidas.
Maior articulação entre a educação e a cultura. É importante integrar as pessoas que saem de escolas de teatro em companhias, o que não está a acontecer. É indispensável também a requalificação permanente das escolas artísticas.

Que perfil deve ter um ministro da cultura. Ou basta um secretário de Estado?
Nem sempre a função que se exerce determina a qualidade do trabalho que se faz, mas também é errado por um ponto final num modelo que funcione. Manuel Maria Carilho, por exemplo, honrou, e bem, o seu ministério. Não o fez sozinho, a sua política emanava de um programa de governo. Ora, quando não há vontade política não vale a pena. Mas o peso é diferente e o acesso a deliberações também. Gostaria que voltássemos a ter um ministro.

Um politico ou uma figura da cultura?
Custa a imaginar que um político não seja uma figura da cultura.

Pois, mas…
O ministro da Cultura não tem de ser necessariamente um artista, mas um intelectual, por certo.

Voltando ao futuro do teatro: de que forma deve responder às novas tecnologias, à globalização?
Todos esses fenómenos que se afastam do confronto direto, da dimensão cognitiva criam a vontade de voltar às coisas essenciais, a um «tempo real», de tal forma que as oficinas, as conferências, as masterclasses, o teatro, estão a ter uma maior procura.

«Há malas que não desfaço», disse quando aceitou o cargo. Fora do TNSJ, que projetos conseguiriam desafiá-lo?
Vou fazendo o meu dia-a-dia sem pensar nisso. Tento não perder a noção do que se passa cá fora, e é nesse sentido que estou agora a colaborar com a Companhia Nacional de Bailado ou colaborei, no ano passado, com a Casa da Música, ou vou agora dirigir o exercício final de teatro dos alunos da ESMAE [Escola Superior de Música, Artes e Espetáculo]. Essas ligações à comunidade são fundamentais, mas não faço planos. Do ponto de vista criativo, não podemos perder o ginásio, o treino sistemático.

Que relação tem com os atores?
Oiço-os muito. Gosto que haja pessoas de diversas áreas a falar sobre o que estamos a laborar, gente que chega por via da dramaturgia ou da tradução. Há uma partilha da construção. Não gosto muito de ter segredos só meus, que nunca chego a dizer nem há nada que por questões táticas guarde para dizer ao fim de um mês. Há um processo dinâmico no qual eu sou um primeiro dialogante. E noto, nos conjuntos, mas sobretudo nos monólogos, que os atores se sentem confortáveis na partilha. Há, claro, afetos em jogo. É uma questão delicada, que reflete o carácter de cada um.

Qual é marca de um grande ator?
Um par de asas enorme num corpo disponível. São pessoas com uma grande capacidade de escuta, donas de um silêncio capaz de ganhar densidade, alguém com um grão de voz específico. Pessoas que não dizem logo aquilo que acham que é, que duvidam, que se dão tempo, que vão atrás de uma descoberta, que trazem tempo e mundo consigo e são capazes de uma generosidade ímpar.

Um ator genial.
Esse é um monstro de muitas cabeças! No outro dia, morreu mais uma cabeça: Philip Seymour Hoffman.

As telenovelas podem «estragar» um ator?
Se um ator estiver maduro e for robusto, nada o demove. O problema é ter de perder tempo com ficções escassamente exigentes. Pouco se cresce, mas ganha-se em popularidade…

Tem uma filha atriz com quem já trabalhou. Foi uma prova difícil?
Foi complicado para ela; era muito nova e, nesse espetáculo (Tambores na Noite, de Brecht), estava exposta a muitos cruzamentos de emoções. Tratei-a como tratei todos os outros atores. Neste momento, a Sara arrisca também a encenação, e julgo que apostará nisso. Mas durante os processos falamos muito pouco das coisas que está a fazer.

Também foi ator. Sente falta da representação?
Nada, a partir de certa altura era um sofrimento muito grande. Sentia claustrofobia, não queria estar ali fechado. Era absolutamente impossível. E com a minha autocensura era impensável.

Na escolha de um ator, o carácter também conta?
É uma questão complicada. Preciso de lealdade, de alguma harmonia à minha volta. Não me dou bem no meio da competição, de zangas, de conflitualidade, são perdas de tempo. E se existem, prefiro até não tomar conhecimento delas. Nunca quis conhecer bem as pessoas fora do trabalho. Tenho raríssimos amigos íntimos no meio. Importante na minha relação com os atores é a partilha que existe dentro da sala de ensaios.

Alguns dos seus amigos descrevem-no como «um epicurista com muito sentido de humor». É verdade?
Gosto muito de estar à mesa, comer, beber, conversar, partilhar o momento da mesa. É um gosto que vem de casa dos meus pais, onde havia sempre meia dúzia de amigos que ali «alapavam» quotidianamente porque se comia bem e porque havia esse hábito de estar à mesa, de ficar à conversa. É um hábito saudável, nosso. Gosto da ideia de estar sem telemóveis e sem relógio.

Estamos a falar de uma pessoa noctívaga, portanto.
Sim, de uma pessoa que faz do jantar a refeição principal. Quando se passa a ter uma vida com horários é preciso, claro, pôr um ponto final nesta boémia. Lembro-me de, adolescente, ir às tantas da manhã com amigos comer bifes ao Tita, para os lados de Mucifal. E quando não se ia, fazia-se. Gosto imenso de cozinhar.

Por exemplo?
Caril à minha maneira, herdada da minha mãe, que aprendera com um amigo indiano. Não sei fazer receitas tradicionais, só coisas inventadas que nunca saem iguais. Lamentavelmente, já tive mais tempo para estar com os amigos.

Neste momento, qual das cidades é a sua «casa», Lisboa ou Porto?
Agora, a minha casa é no Porto; em Lisboa, às vezes. E eu gosto muito. Habituei-me a viver o Porto a pé e, portanto, tenho uma relação física com a cidade. Antes de ser diretor do TNSJ fazia grandes caminhadas, até porque nem conduzo. Era capaz de ir a pé da Praça da Batalha à Foz. O meu recorde é Praça da Batalha-Leça da Palmeira, pelo rio e à beira-mar.

É um recorde de quantos quilómetros?
Talvez uns quinze. É preciso darmo-nos tempo.

Chove muito no Porto.
É mais sobrecarregado no inverno, mas também tem verões intensos. Também gosto de nevoeiro e céus cobertos.

Lisboeta no Porto, filho de mãe beirã e de pai algarvio. É uma grande mistura.
É isso, sou o ponto de encontro entre o Norte e o Sul, nascido na Maternidade Alfredo da Costa.

E que mais pode contar dessa «experimentação» da cidade?
A luz sempre diferente quando há água por perto, a distância pautada pela proximidade ou pelo afastamento das pontes, a multiplicidade arquitetónica, as encostas de presépio, os nomes impressos na encosta de Gaia. O tempo e o vivido que estão inscritos em tudo isto.

É contemplativo?
Sou um viajante de comboios – e isso diz muito.

E a melancolia?
Nós nascemos com o ferrete do luto. Há quem seja inconsciente em relação a isso, e ainda bem. Não é o meu caso.

Voltando ao palco. Quanto tempo leva a preparação de uma peça?
Depende muito. Se for uma obra de raiz, o autor pode ter de trocar informações comigo durante uns meses; como pode ser algo que se constrói em oito ou nove semanas de trabalho.

Quantas semanas de ensaio?
Sete semanas é o mínimo.

Quem pode assistir aos ensaios?
Já tive turmas de alunos de teatro a assistir do primeiro ao último ensaio. É uma questão de confiança no grupo que assiste e de abstração para quem está a criar.

Há uma fase dolorosa do processo de conceção e criação?
Mais de inquietação e insónia. A passagem para o palco, que é o momento das decisões quase definitivas, por exemplo. Com o tempo vamos urdindo maneiras de fazer que servem para aplacar a solidão do decisor.

Depois da estreia, o encenador sai de cena. É duro?
É duro. Mas quando o trabalho é feito com partilha de responsabilidade, depois da estreia o encenador já lá não está a fazer nada. Ou muito pouco.

Gil Vicente é um dos seus autores. Porquê?
Pela linguagem extraordinária e porque é um gozo redescobri–lo. O que à partida parece uma coisa dificílima torna-se um gozo absoluto. Gil Vicente congrega as facetas de extraordinário escritor, como se percebe pelos autos religiosos e pela poesia absolutamente inusitada que lá encontramos, com as de um homem que tece comédias de forma inacreditável.

Quem assiste aos «seus» autos encontra um lado místico.
Se calhar, mais «ritualesco». Tenho esse lado, sim. Acho que isto é tudo uma grande cosmogonia e há todo um passado que vem connosco. Não se a vida é uma ou sete, se há ou não eternidade, nem isso me interessa nada. Mas é óbvio que há um peso e uma responsabilidade imensa com a qual nascemos e haveremos de morrer. Para quem tem curiosidade e gosta de conhecimento, a vida é uma sucessão de iniciações. E isso percebe-se tanto num laboratório de moléculas como nos livros. Nem sei como se pode dizer que se amou ou ama alguém sem ter a perceção de que há algo que nos ultrapassa, que não tem só a ver connosco, que obriga a ligações com o diverso.

Teve uma educação católica?
Estive bastante próximo da Igreja, em vários momentos e com grupos diversos. No outro dia, reencontrei-me com um grupo de gente mais velha ligada à JOC e à LOC [movimentos operários católicos], numa cerimónia em memória de uma grande amiga que partiu cedo de mais. Fiz parte da paróquia de Santa Maria de Belém, mas diversos conflitos afastaram-me. Um deles, para quem se lembra, teve que ver com a suspensão e posterior excomunhão do padre Felicidade Alves. Aos domingos, a Igreja dos Jerónimos era um campo de batalha entre o regime e os seguidores do Concílio Vaticano II.

Não é um encenador panfletário. A obra aberta marca a sua geração. É preciso confiar no espetador.
A obra aberta continua como um ideário. Se há algum movimento de indução, esse movimento vai no sentido de abrir portas. Nem pensar em condicionar a capacidade de perceção ou afunilar os sentidos. Não sou contra a arte engajada, mas prefiro as peças do jovem Brecht porque há nelas qualquer coisa que ainda não está completamente fechado, dogmatizado, um misto de liberdade em ação, uma militância ainda sem estreitamentos.

As suas personagens.
Não têm nomes. Mas quanto mais contraditórias, mais desmesuradas ou mais utópicas mais ricas. Essas são as minhas personagens. Já me chamaram o encenador das mulheres, mas isso são boatos!

O que o comove?
A fragilidade aliada à força e determinação. A capacidade de empreender e a fragilidade, espécie de súmula universal em relação à vida.

E os seus livros?
Há uns anos, durante uma mudança, resolvi doar ao Centro de Documentação do Teatro São João parte da biblioteca de teatro que herdara do meu pai. Por causa de uma mudança recente, todos os outros estão provisoriamente guardados num armazém em Lisboa, os meus e os da Ana, só ela sabe onde, é ela que tem a chave. Estou a ler Hotel, de Paulo Varela Gomes – surpreendente –, e preparo-me para enfrentar Os Memoráveis, de Lídia Jorge. Há muitos anos já que me tornei leitor de romances.

Os seus encenadores.
Giorgio Strehler, Peter Stein, Tadeusz Kantor, Romeo Castellucci, Krzysztof Warlikowski.

Para quando Shakespeare, para quando Molière?
Um dia. Gostaria muito de encenar Romeu e Julieta, Otelo e, entre as peças mais políticas, Júlio César. De Molière, O Misantropo. Falta sempre fazer muito.

Deixou de fumar abrutamente e nunca o disse. Quem puder e quiser que repare. É assim sempre?
Sim. (Mas atenção: eu não deixei os cigarros, os cigarros é que me deixaram).

Disse numa entrevista que é um exclusivista e que a sua vida «é marcada por uma série de coisas únicas». E a principal delas é…
… segredo, evidentemente.

 

PERFIL

Pintor, cenógrafo, figurinista e encenador, é, desde 2009, diretor artístico do Teatro Nacional São João. Nuno Carinhas estudou pintura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa. Como encenador, destacam-se trabalhos realizados para as companhias Cão Solteiro, ASSéDIO, Ensemble, Escola de Mulheres e Novo Grupo/Teatro Aberto. Colaborou ainda com o Teatro Nacional de São Carlos, o Ballet Gulbenkian, a Companhia Nacional de Bailado, o Teatro Nacional D. Maria II, o São Luiz Teatro Municipal, o Chapitô e Os Cómicos. O Grande Teatro do Mundo (Calderón de la Barca), A Ilusão Cómica (Corneille), O Tio Vânia (Tchekhov), Todos os Que Falam (Beckett), Beiras (tríptico de Gil Vicente) e Tambores na Noite (Bertolt Brecht) contam-se entre os espetáculos encenados para o Teatro Nacional São João, no Porto. Como cenógrafo e figurinista, tem trabalhado com Ricardo Pais, Fernanda Lapa, João Lourenço, Fernanda Alves, Jorge Listopad, Paula Massano, Vasco Wellenkamp, Olga Roriz, Paulo Ribeiro, Joaquim Leitão. Em 2000, realizou a curta-metragem Retrato em Fuga e experimentou a dramaturgia: Uma Casa contra o Mundo, texto encenado por João Paulo Costa. Nuno Carinhas nasceu em Lisboa em 1954.