1984

Notícias Magazine

Lembro-me dos tempos em que, assim que saíamos à rua, ninguém sabia ao certo onde estávamos. Confiava-se, quan­do se combinavam coisas, que todos cumpririam a sua palavra e lá estivessem, à hora combinada. Se precisássemos de cancelar o compromisso recorríamos às cabinas de telefone públicas, mas a outra pessoa teria de estar em casa, para que soubesse a tempo da nossa impossibilidade de chegar ao local de encontro.

Quando precisávamos de falar com alguém, se fos­se por motivos profissionais, ligávamos para o seu trabalho, durante as horas de expediente. Se fosse por motivos pessoais, ligá­vamos para casa, durante as horas de descanso. Os dois mundos não se misturavam. Não havia uma ingerência do trabalho na nos­sa vida e da nossa vida no trabalho. As pessoas com quem contac­távamos no dia-a-dia conheciam aquilo que observavam no seu convívio connosco e nada mais. O olhar do outro não conseguia alcançar mais do que aquilo que nós permitíamos.

Confesso que me lembro desses tempos com alguma di­ficuldade. Parece um mundo estranho, quase ficcional. Um mundo onde cada coisa tinha o seu tempo e o seu espaço, nunca se mistu­rando. Principalmente, um mundo onde não poderíamos ser en­contrados ou contactados se não o desejássemos. Nem através de computadores nem de telemóveis ou GPS. As redes sociais eram construídas em presença física e a privacidade uma decorrência na­tural da vida.

Às vezes, antes de entrar em palco, quando me sinto mais ner­vosa, costumo dizer a brincar que bom, bom era desligar o telemó­vel, pegar no carro e andar por aí, ao sabor do vento, sem que nin­guém saiba onde estou. Nunca o fiz e não me parece que alguma vez o farei, mas às vezes sabe bem pensar que, se quisermos, podemos fugir do mundo e perdermo-nos por aí. Como antigamente. Foi as­sim que me lembrei como era, antigamente. E como o antigamente, que não tem mais de 15 anos, afigura-se agora uma memória tão longínqua que mais parece inventada.

Ir para onde não possamos ser encontrados parece coisa im­possível de fazer nos tempos modernos. Tão difícil se está a tornar a nossa invisibilidade que, um dia, a privacidade passa a ser ilegal. Não tenho a certeza de que os sacrifícios que têm sido pedidos ao nosso direito à privacidade sejam utilizados para algo que seja ape­nas positivo. É certo que na luta contra o terrorismo e na sociedade do «medo do outro» que fomos construindo desde há dez anos se diz que muitas vidas foram salvas à custa da exposição da privaci­dade de todos. Será assim, talvez. No entanto, em nome do progres­so, já nem nos reservam o direito a podermos ser invisíveis se assim o quisermos. Não porque queiramos fazer alguma coisa suspeita. Mas porque queremos, simplesmente, desligar-nos de tudo para conseguirmos conectar-nos a nós próprios.

A partir do próximo ano, todos os automóveis fabricados na UE terão obrigatoriamente um sistema de detecção de acidentes, que in­dicará a sua localização. É uma razão nobre, a salvaguarda da vida humana. No entanto, parece-me que esse tipo de controlo deveria ser feito de forma voluntária, nunca por obrigatoriedade. Quem qui­sesse ser encontrado incorporaria o sistema no carro. Quem prefe­risse que entidades públicas ou privadas não tivessem acesso a toda a informação acerca dos seus passos não incorporaria o sistema.

Há qualquer coisa aqui que me lembra o livro de George Orwell. Entre automóveis, facturas e redes sociais, perderemos aquele território para o qual fugíamos sempre que precisávamos de nos isolar do mundo. Um território soberano que hoje tenta in­vadir-se a todo o custo. Não deixa de ser tragicamente cómico que, num mundo onde reinam os interesses privados, se queira tornar pública a nossa privacidade.

[Publicado originalmente da edição de 23 de março de 2014]

 

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA