Lembro-me dos tempos em que, assim que saíamos à rua, ninguém sabia ao certo onde estávamos. Confiava-se, quando se combinavam coisas, que todos cumpririam a sua palavra e lá estivessem, à hora combinada. Se precisássemos de cancelar o compromisso recorríamos às cabinas de telefone públicas, mas a outra pessoa teria de estar em casa, para que soubesse a tempo da nossa impossibilidade de chegar ao local de encontro.
Quando precisávamos de falar com alguém, se fosse por motivos profissionais, ligávamos para o seu trabalho, durante as horas de expediente. Se fosse por motivos pessoais, ligávamos para casa, durante as horas de descanso. Os dois mundos não se misturavam. Não havia uma ingerência do trabalho na nossa vida e da nossa vida no trabalho. As pessoas com quem contactávamos no dia-a-dia conheciam aquilo que observavam no seu convívio connosco e nada mais. O olhar do outro não conseguia alcançar mais do que aquilo que nós permitíamos.
Confesso que me lembro desses tempos com alguma dificuldade. Parece um mundo estranho, quase ficcional. Um mundo onde cada coisa tinha o seu tempo e o seu espaço, nunca se misturando. Principalmente, um mundo onde não poderíamos ser encontrados ou contactados se não o desejássemos. Nem através de computadores nem de telemóveis ou GPS. As redes sociais eram construídas em presença física e a privacidade uma decorrência natural da vida.
Às vezes, antes de entrar em palco, quando me sinto mais nervosa, costumo dizer a brincar que bom, bom era desligar o telemóvel, pegar no carro e andar por aí, ao sabor do vento, sem que ninguém saiba onde estou. Nunca o fiz e não me parece que alguma vez o farei, mas às vezes sabe bem pensar que, se quisermos, podemos fugir do mundo e perdermo-nos por aí. Como antigamente. Foi assim que me lembrei como era, antigamente. E como o antigamente, que não tem mais de 15 anos, afigura-se agora uma memória tão longínqua que mais parece inventada.
Ir para onde não possamos ser encontrados parece coisa impossível de fazer nos tempos modernos. Tão difícil se está a tornar a nossa invisibilidade que, um dia, a privacidade passa a ser ilegal. Não tenho a certeza de que os sacrifícios que têm sido pedidos ao nosso direito à privacidade sejam utilizados para algo que seja apenas positivo. É certo que na luta contra o terrorismo e na sociedade do «medo do outro» que fomos construindo desde há dez anos se diz que muitas vidas foram salvas à custa da exposição da privacidade de todos. Será assim, talvez. No entanto, em nome do progresso, já nem nos reservam o direito a podermos ser invisíveis se assim o quisermos. Não porque queiramos fazer alguma coisa suspeita. Mas porque queremos, simplesmente, desligar-nos de tudo para conseguirmos conectar-nos a nós próprios.
A partir do próximo ano, todos os automóveis fabricados na UE terão obrigatoriamente um sistema de detecção de acidentes, que indicará a sua localização. É uma razão nobre, a salvaguarda da vida humana. No entanto, parece-me que esse tipo de controlo deveria ser feito de forma voluntária, nunca por obrigatoriedade. Quem quisesse ser encontrado incorporaria o sistema no carro. Quem preferisse que entidades públicas ou privadas não tivessem acesso a toda a informação acerca dos seus passos não incorporaria o sistema.
Há qualquer coisa aqui que me lembra o livro de George Orwell. Entre automóveis, facturas e redes sociais, perderemos aquele território para o qual fugíamos sempre que precisávamos de nos isolar do mundo. Um território soberano que hoje tenta invadir-se a todo o custo. Não deixa de ser tragicamente cómico que, num mundo onde reinam os interesses privados, se queira tornar pública a nossa privacidade.
[Publicado originalmente da edição de 23 de março de 2014]