Roda-viva

Notícias Magazine

«A vida é uma roda»: pedaço de sabedoria popular que me foi ensinado pela minha avó materna e que de vez em quando me ocorre. À primeira audição, pode parecer que a simplicidade da imagem não faz justiça à complexidade da vida, mas depois de pensar bem nas suas premissas, percebo que naquela metáfora está contido todo um sistema filosófico elaborado e, acima de tudo, bem enunciado.

Às vezes, quando alguém lhe dizia alguma coisa que lhe lembrava as limitações que o tempo lhe havia imposto, ou quando brincavam com a sua provecta idade, a minha avó lá se saía com o mantra, em jeito de provocação. «Hás-de cá calhar», parecia que dizia entredentes. Quando era mais pequena, achava graça àquela observação tão caricata, a fazer lembrar um relógio, que ia avançando no tempo e levando-nos connosco na viagem. Mas não pensava que a frase pudesse ser mais do que isso; uma imagem caricata usada pela minha avó para mandar alguém bugiar. Só mais tarde percebi que aquele lema me merecia maior atenção e ponderação. Pode parecer por vezes que a vida é mais obtusa do que redonda, mais oblíqua do que circular, mais angulosa do que sem arestas. Mas é tudo fogo de vista. No final das coisas (e da vida), a verdade é que a sua forma é mesmo redonda. A forma de uma roda lentamente a girar. Uma daquelas rodas gigantes, de feira. Em cima dela, confortavelmente sentados, giramos em marcha lenta. Só temos direito a uma viagem. Vamos subindo, subindo aos poucos, ansiosos por ver o cume e os mistérios insondáveis que nos reserva. Quando finalmente chegamos lá acima, observamos a vista, encantados. Tão enlevados ficamos que nos esquecemos que a roda continua a girar e convencemo-nos que ficaremos para sempre com aquela vista desafogada. Mas não.

A verdade é que se vai tornando progressivamente mais difícil ver o que víamos antes. O horizonte vai-se pondo, como um ocaso. Temos de esticar mais e mais o pescoço e pôr-nos em bicos de pés. Quando damos por nós, já estamos em equilíbrio perene, a lutar para não cair da roda abaixo. Agarramo-nos com força, porque não conhecemos outra vida que não aquela. Agarramo-nos até ao limite das nossas forças, até que não possamos mais. Depois, largamos a roda e caímos sem amparo. Fizemos uma roda completa e é hora de sairmos daquela viagem. Ao mesmo tempo que fizemos uma volta completa, outros vão começando a sua viagem. Igual em movimento, mesmo que diferente em ritmo. Assim, sucessivamente.

Devia ser isto que a minha avó quereria dizer quando evocava a roda da vida. Infelizmente, não lhe consegui perguntar a tempo. Muito antes de terminar a sua volta, já a minha avó se havia ausentado da viagem. Progressivamente, ia deixando cair o pensamento e o corpo, aos poucos e poucos, pedaço a pedaço. Assim o ditava a doença que a acometeu. E eu, tonta, não fui a tempo de formular o meu pensamento e de lhe perguntar se seria mais ou menos isto a que se referia quando soltava o seu lema favorito. De fraco, o corpo largou a roda e a sua vida foi-se.

A minha avó deixou, no entanto, muitas marcas na sua roda e na roda dos que a rodeavam. Não é que fosse dada a grandes ou profundos pensamentos. Pelo contrário, era muito prática e terra-a-terra. Mas, porventura, serão os que menos se deslumbram com a contemplação intelectual da vida quem a consegue descrever melhor. E quem nos dá, numa frase tão simples, numa imagem tão clara, as directrizes mais importantes. Luz era o nome da minha avó. Luz que não se apagará enquanto houver vida que a tenha conhecido e que tenha sido tocada pelas suas frases.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA

[]13-10-2013]