Piano e medo

Notícias Magazine

A escutar o disco “Amália” de Júlio Resende. Fado, piano – e qualquer outra coisa.

Um país

Claro que a anatomia humana tem além de pés e cabeça e tronco e membros, uma coisa material e imaterial a que se chama memória. E aí, lá dentro, talvez sofras numa língua específica.

Mas não se sofre debaixo dos pés nem acima da cabeça. E um país é isto: é aquilo que está debaixo de ti, acima de ti, à tua volta.

O barco negro

Não há barco que de noite não seja negro. E não há dia que em certo momento não se confunda com a noite. E mesmo com os pés em cima de chão que não balance, corres sempre o risco de naufrágio. Estar vivo é estar num barco, sim, e a cor dele, a tinta, se raspares bem, debaixo de mil outras, é sempre a mesma: o barco é negro, meu caro, não te iludas, sempre negro, sempre negro.

(Mas enquanto os elementos naturais e os elementos malvados não rasparem as tintas alegres, aproveita, meu caro. Por exemplo, hoje, ali, do outro lado da rua, parece que querem começar um baile. E já te enviaram o convite.)

Lisboa

Certos bairros de Lisboa estão satisfeitos com a sua tristeza mansa. E por vezes até parece que certas ruas inclinadas só sobem, nunca descem. E tal não é uma ilusão de óptica, mas uma ilusão sentimental – ilusões que enganam bem mais do que os olhinhos que deus nos deu; olhos que, apesar de errarem uma ou outra vez, acertam afinal quase sempre, minuto após minuto. Já o coração, esse, é um órgão basicamente ligado ao erro e a funções sanguíneas. Um órgão que nasceu para falhar.

O amargo

Tudo o que é amargo é feito para teres vontade de haver dia seguinte. Devemos agradecer ao que é amargo.

O medo

O medo é uma forma de endireitares as costas. Ficas homem subitamente. Mulher subitamente. O medo é uma forma de endireitares as costas.

O medo é uma forma de fazer homens fortes, mulheres fortes.

Nada perturba mais o crescimento do que não ter medo: cresce com medo, menina; cresce com medo, menino!

Só cresço porque tenho medo, só me torno forte porque tenho medo, só me torno mau porque tive medo, só mato porque tive medo, só serei um homem porque tive medo, mulher porque tive medo. Assim se ensina na boa cidade, na velha cidade e no velho campo.

Mas não é o medo do que está à tua volta – porque isso pode matar ou não. Medo, sim e muito, do que está sentado em pleno meio de ti. Porque isso, sem dúvida, mata, acabará por te matar, não pode deixar de te matar.

Mas não o tentes expulsar, não cometas esse erro: ele não pode sair de ti sem a tua companhia.

GONÇALO M. TAVARES ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA

[13-10-2013]