Sou um desastre a vestir-me, combino cores erradas e já me apanharam no trabalho com sapatos diferentes em cada pé, mas tenho um fraquinho antigo por um artigo de luxo: os spectator shoes , sapatos de duas cores. A ponta do sapato e o calcanhar são negros ou castanhos, mas o dorso, de pele mais suave, é branco. Os clássicos spectators são de laço mas eles também podem ser de pala – o essencial é o contraste entre as duas cores. São sapatos de quem capricha a vestir-se e gosta de ser notado, o que nos leva a outro contraste, desta vez comigo, que sou informal e tímido. A paixão antiga pelo objeto e a indecisão em usá-lo explicam que o meu último (e primeiro) par de spectators tenha sido comprado pela minha mãe, tinha eu oito anos.
No meu bairro – São Paulo, Luanda, anos 50 – ocorria um drama familiar, situação que então se estendia sempre por vários vizinhos. Uma jovem mulata de olhos verdes apaixonara-se por um cabo-verdiano, deixando os pais em pânico pois constava que o homem já era casado e vestia demasiadamente bem. Repare-se no “e” copulativo: naquele bairro proletário, de colonos e filhos da terra, camionistas e pequenos funcionários, vestir bem não servia de adversativa para um defeito, agravava-o. Os olhares de todos, sobre o cabo-verdiano, baixavam-se para os pés e, nestes, cintilava o escândalo de uns sapatos com a moldura de um negro polidíssimo, sobre o qual refulgia um branco de encandear. Sapatos bicolores como os pneus, também com uma faixa branca no negro, do descapotável Chevrolet Corvette da Marabunta, a mais conhecida e platinada prostituta da cidade.
A primeira vez que o bairro, e a mulata em vias de se apaixonar, deu pelos spectators do cabo-verdiano foi num baile de Carnaval, o que suavizou tão ostensivos sapatos. Mas quando, nas semanas seguintes, o homem começou a rondar a jovem calçado naqueles preparos, a sentença caiu, definitiva: o namoro era inadmissível. Hoje, que sei mais de amores e de histórias de emigrações, suspeito que o cabo-verdiano tenha acabado por fazer do seu couro provocador um encanto. Terá explicado à mulata que o bairro era provinciano, enquanto ele era moderno. Terá mostrado, talvez, as fotos de uns primos em New Bedford, Massachusetts, destino tradicional dos cabo-verdianos, onde os rapazes de bigode fino usavam sapatos pretos e brancos. Talvez lhe tenha falado dos grupos de jazz e de swing que “já há uma data de anos, mais de vinte, minha querida, usam sapatos destes…” Mas duvido que tenha citado O Great Gatsby , Scott Fitzgerald era pouco lido no meu bairro. O certo é que, uma manhã, demos pela fuga da mulata e do cabo-verdiano. A família haveria de receber de Catumbela, outro destino de cabo-verdianos, uma carta dela, amigada e feliz.
O episódio levou-me a dar conta de imagens de sapatos a preto e branco. Nos filmes era o Fred Astaire e nas revistas eram os músicos negros. Outros usavam chapéu, fumavam charuto e eram gangsters notórios. Nos anúncios da Reader’s Digest, os passageiros da Pan American desembarcavam nas Caraíbas assim calçados. A preto e branco. Só muito mais tarde soube que aqueles sapatos tinham esse nome, spectator , espectador, uma bela maneira de estar no mundo, mas dançarino de Hollywood, músico de jazz, gangster ou viajante já era bem atrativo para eu ousar pedir à minha mãe um par daquilo que eu ainda chamava sapatos a preto e branco. A minha mãe resistiu, mas aproveitei termos cruzado na Baixa o cônsul americano, que vestia de linho branco e calçava spectators , para a convencer. Foram os sapatos da minha vida.
Não fui publicamente feliz com eles, agravavam a minha falta de jeito para combinar roupa e incitavam os outros a dar-me a atenção que eu não desejava. E, no entanto, eu amava aqueles sapatos. Passei a só usá-los no quarto, sentava-me a olhá-los e, com eles, desembarcava nas Bermudas, metralhava rivais em Chicago e fugia com mulatas de olhos verdes. Depois, descalçava-os, punha os keds (como chamávamos aos ténis) e saía.
[20-10-2013]