O senhor Voltaire e o Século XX – a fotografia e a dança

Notícias Magazine

Duas cadeiras, lado a lado, numa das principais praças do bairro. Os dois sentados. O senhor Foucault está com os olhos baixos, fixos numa zona do solo – um quadrado preto que anuncia um estranho poço, de grande profundidade.

Não deixando de escutar o que lhe diz o senhor Voltaire, o senhor Foucault, de vez em quando levanta-se, debruça-se sobre esse quadrado negro e olha demoradamente lá para baixo.

O Senhor Voltaire mantém sempre um sorriso no canto da boca que denuncia o sarcasmo – a distância psicológica e moral em relação às coisas de que fala.

Um belo álbum de fotografias, este. A história individual do século XX em fotografias – disse o senhor Voltaire.

– Eis aqui – e o senhor Voltaire aponta para uma das primeiras fotografias do álbum que tem nas mãos – eis aqui uma rua cheia de animais que respiram e de objectos que são vendidos. Nas ruas dos ricos, observe-se, há menos quantidade, por metro quadrado, de animais que respiram e também é menor o número de objectos, embora o preço seja maior.

– Nas melhores ruas da cidade os cães têm movimentos de madame; e a educação impera – disse o senhor Voltaire. – Os cães não ladram; e não abanam demais a cauda, uma delicadeza.

O senhor Voltaire pega noutra foto e comenta:

– No início do século XX, as mulheres trabalham em casa onde o silêncio permite que as mãos se tornem rápidas nessa caligrafia concreta designada como trabalho manual. Costurar é fazer arquitecturas mínimas, uma arquitectura de miniatura e de lã.

O senhor Voltaire aponta para outra foto:

– No século XX, ao domingo no parque junto à erva, os homens procuram diamantes e as mulheres procuram os homens que procuram diamantes. Existe a música, escutada pelas mulheres que guardam os olhos para os homens e pelos homens que querem ver as mulheres dançar.

– De facto – disse o senhor Voltaire – para os homens com desejo a música só existe se as mulheres dançarem. A dança feminina é, portanto, a prova de que a música existe. Isto, no século XX. No século XXI tudo mudou.

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[17-11-2013]