O que a franja de Merkel pode fazer por nós

Notícias Magazine

Nos últimos anos, Angela Merkel tornou-se uma figura polémica em Portugal. Houve um jornal – o de Negócios – que a escolheu três vezes como a mais poderosa figura nacional. Não a mulher mais poderosa – como fez a Forbes, embora no âmbito do mundial – mas a personalidade mais poderosa, sem distinção entre mulheres e homens. Na opinião pública portuguesa, tanto a publicada como a que se ouve nas ruas, entre os balcões dos cafés e os tabliers dos táxis, Angela Merkel tem assumido sobretudo o papel de figura odiada e odiosa, é a personificação de todos os males, sobretudo dos que nos obrigam a apertar o cinto e a manter os défices a níveis só possíveis com muitas restrições. Mas houve, claro, quem também a defendesse, sob o argumento natural de que não se morde na mão que nos alimenta. Essas defesas são, no entanto, sobretudo ideológicas e, sendo menos emocionais do que as primeiras, ganharam pouco eco na esmifrada vox populi.

Mas há uma segunda análise, menos evidente, sobre o que tem sido verdadeiramente interessante no debate à volta da figura de Angela Merkel. Nem os que a atacam nem os que a defendem fazem muitas referências de género. Isto, numa mulher que se tornou uma das mais poderosas da Europa, e, por extensão, do mundo, é digno de nota. Mesmo quando Margaret Thatcher foi chamada Dama de Ferro, a questão feminina estava lá, ainda que fosse na sua versão mais… digamos, masculinizada. A feminilidade de Thatcher era um assunto, até na forma como ela a reprimia, ou usava. Ou no contraste entre as suas meias de vidro e as suas decisões de ferro. Hillary Clinton não escapou a conversas mediáticas sobre o comprimento do seu cabelo ou o seu penteado, e houve quem tivesse posto as culpas da sua derrota face a Obama, nas primárias do Partido Democrata, na desigualdade, esse, o último teto de vidro para uma mulher na política americana.

Em Angela Merkel, a questão do género não é um assunto. (Isto embora a frase anterior encerre em si mesma uma contradição.) Ajuda, claro, a modéstia natural da chanceler alemã. O facto de ela não usar os seus encantos femininos em nenhuma circunstância, de ostentar a sua franja impassível e sem ponta de sensualidade, os seus anódinos conjuntos de calças e casaco, que pretendem esconder mais do que mostrar. Merkel tem uma vida tão absolutamente privada que até a sua natureza feminina se esconde por detrás dessa barreira.

Mas mesmo isto é estranho. Há suficientes adjetivos no dicionário para atingir mulheres que nos são desagradáveis, sobretudo em cargos de chefia. E raramente ouvi algum deles ser atirado à chanceler alemã. Quando as suas fotografias numa colónia de naturistas apareceram durante dois dias nos nossos facebooks, e mostraram ao mundo o seu corpo nu, a imagem de Merkel não foi danificada. Foi, até, humanizada, frágil e vulnerável como qualquer corpo nu, a sua feminilidade posta em segundo plano, apesar de estar mostrada em absoluta evidência.

Tudo isto representa um enorme salto para a humanidade. Pouco analisado, talvez, arrisco, pela repulsa que a figura ainda nos provoca. Deem-nos uns aninhos e Merkel será, tenho a certeza, uma das principais bandeiras históricas de todas as mulheres do mundo. Até porque, sendo eleita nestas eleições, já figurará nos anais da história como a líder mais tempo em funções.

[22-09-2013]