O avesso do estilo

Notícias Magazine

Não sei o que será preferível: estar na moda ou ter estilo. Ter estilo é ter personalidade e vesti-la a rigor. Estar na moda é vestir várias peles. O ideal seria que se juntassem os dois, a moda e o estilo, a personalidade própria e as personagens que vestimos. Porque, se formos bem a ver, nunca somos apenas uma só coisa. Podemos ser vários num só. A coerência da dispersão.

A poesia já nos ensinou que sim, que podemos ser múltiplos de um. Que isso não significa que não saibamos quem somos, mas significa que somos muitas coisas diferentes ao mesmo tempo. Será riqueza de carácter e não fraqueza de espírito. Um estímulo à imaginação, também. Que parte de mim quero mostrar hoje e como posso mostrá-la, pergunto-me, achando-me livre como o vento. Tenho a liberdade de me construir, de erguer uma ideia de mim, de me obrigar a sentir de certa forma. Se me quero sentir feminina, um vestido. Se preciso de me sentir confiante, um tailleur, se desafiadora, umas calças de ganga, uma t-shirt e um blusão de cabedal (ou imitação de cabedal, para quem sinta que um corpo merece apenas uma pele verdadeira, a sua). Mas quando pensamos que somos livres, percebemos que nem por isso. Há as convenções. Há limites ao que posso ser através da roupa e ao que posso mostrar aos outros.

A roupa é sempre para os outros. Para mim, ando sem roupa. Para os outros, visto-me. Então a roupa é também uma forma de nos preservarmos, de não nos mostrarmos completamente ao mundo. Escondemos partes de nós, para que possamos guardar um bocadinho de nós para nós próprios. E para não assustarmos os outros. Vestimo-nos para os convidarmos a acercarem-se de nós, a gostarem de nós. Para isso, seguimos regras. Que não derivam necessariamente da roupa, mas, provavelmente, de nós, enquanto conjunto de pessoas, num determinado local, num determinado período temporal, que vai dizendo o que se pode ou não vestir e em que ocasiões. Não se pode deixar algo tão importante ao acaso ou ao bom senso. É preciso que se estabeleça uma ordem. O mais fácil será ir-se por idades. De bebés até à adolescência, vestem-nos. Não somos responsáveis por nós, somos aquilo que de nós fazem. Uma extensão dos nossos pais. Depois, na adolescência, queremos começar a mostrar quem somos. Ou, caso ainda não saibamos bem, quem andamos a procurar ser. Passado o enamoramento pela verdade absoluta de ser e de mostrar, já depois de a vida nos ter dado duas ou três lambadas valentes, percebemos que o mais prudente, para não desgastar o coração e começar a atrair apenas quem nós queremos e não o mundo inteiro, passamos a seleccionar a roupa e o estilo, como se seleccionássemos amigos. Seguimos as regras, das quais nunca nos afastámos verdadeiramente, nem sequer na adolescência. Aos 20 anos, mostro isto. Aos 30, aquilo. A partir dos 40, já não posso mostrar o que mostrava antes. Aos 50 e aos 60, menos ainda. Como se fossemos guardando mais e mais de nós, à medida que nos vamos tapando, cobrindo.

Deve ser por isso que consideramos uma afronta quem aos 50 se vista como se tivesse 30. Ou quem aos 20 se vista como se tivesse 60. Pior ainda, quando se quebram as regras do bem vestir para o trabalho. Os fatos trocados por calças de ganga ou ténis. Uma afronta. Como se poderia distinguir o bom do mau profissional, a pessoa com um trabalho com elevado grau de poder, da pessoa com um baixo grau de poder, se não fosse pelos fatos e gravatas que nos obrigamos a usar? E, no entanto, preservamos sempre esta ideia de que somos livres quando nos vestimos. Que a nossa essência, o nosso estilo está lá, juntamente com as modas e com as imposições. Poderá não ser imediatamente visível. Poderá estar meio escondido, discreto, num acessório, na roupa interior. Uma subtil afirmação de nós próprios. Uma irreverente afirmação de nós próprios. A liberdade de ser, sem a opressão para o esconder e sem a obrigação de o demarcar.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA

[20-10-2013]