«Nós daqui e vós dali»*

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Parece de propósito, mas não foi. Talvez tenha sido o subconsciente a dizer-me que gostaria de pensar naquele assunto porque estaria a viver o seu oposto, mas, correndo o risco de me repetir, falarei da experiência enriquecedora que está a ser trabalhar música com uma geração mais velha, a geração que constitui uma grande parte das minhas influências dentro da música portuguesa.

Por altura da edição desta crónica, já o concerto que a Deolinda dará juntamente com os Gaiteiros de Lisboa estará mais que terminado. No entanto, o que nunca se encerrará serão os conhecimentos que se adquiriram durante o processo de ensaios e reuniões de produção.

Tudo começou com um telefonema do Carlos Guerreiro. Não. Na verdade, tudo começou há cerca de 10 anos atrás, quando o Carlos nos foi ajudar com os arranjos na primeira banda que eu e o Zé Pedro Leitão tivemos. Carlos Guerreiro dispensa apresentações. Esteve presente em praticamente todos os momentos históricos da música portuguesa entre os anos 70 e o presente. Na altura, a excitação de o conhecer foi-se progressivamente tornando numa sólida amizade.

Por altura das gravações do segundo álbum da Deolinda, o Carlos esteve presente nos coros de algumas das canções. Ajudou ainda com um bombo e ferrinhos. Um ano depois, os Gaiteiros convidaram-me a participar numa canção do seu último álbum, Avis Rara.

Os Gaiteiros de Lisboa são uma das mais importantes bandas portuguesas dos últimos 20 anos. Fazem um trabalho de recuperação de expressões poéticas e musicais portuguesas, criando, em paralelo, canções originais que enriquecem o seu universo musical e lírico. São importantes as coisas que nos dizem, porque importaram no passado, ajudando a criar uma parte da identidade cultural que se reconhece como portuguesa. E são importantes as coisas que nos dizem, porque falam do presente com uma pertinência e uma irreverência necessárias a todos os trabalhos musicais dotados de contemporaneidade.

Como dizia, um dia, o Carlos ligou-me com um convite. A ideia era juntarmos reportórios e estilos. Ficámos encantados com a ideia de podermos trabalhar com alguns dos músicos que nos ensinaram a gostar de música portuguesa. Encontrámo-nos para pensar de que forma poderíamos desenhar este concerto especial. Falámos de música e dos tempos em que eles começaram a tocar. Contaram-nos histórias preciosas do Zeca Afonso e do Fausto, que acompanharam, dos tempos do GAC, a que pertenceram. Nos ensaios, por falta de amplificação do meu cavaquinho, ensinaram-me a tocar e a cantar num único microfone. Entre os risos de todos, diziam-me que era o microfone «à PREC», lembrando os tempos em que, depois da revolução, andaram pelo país, dando concertos com muita vontade de tocar, mas com muito poucos recursos técnicos.

Os Gaiteiros sempre se assumiram como uma banda «sem cordas» e a expectativa de todos era ver de que forma é que as guitarras e o contrabaixo se iriam «encaixar» nas suas canções. À medida que íamos avançando, fomos chegando a um som de grupo, coeso. Cada banda escolheu 10 temas da outra para tocar, num total de 20 temas tocados em conjunto. Daí nasceu o que sentimos ser uma nova visão das canções de cada um. Uns Gaiteiros Deolindos, ou uma Deolinda Gaiteira. Esta colaboração deixou-nos felizes. Abrimos perspectivas novas à nossa música. Acima de tudo, reforçámos uma amizade e aprendemos muito uns com os outros.

*Canção dos Gaiteiros de Lisboa, do álbum “Bocas do Inferno”

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[10-11-2013]