Escuta e Exactidão

Notícias Magazine

Sobre o livro À Sombra da Memória de Eugénio de Andrade.

Eugénio de Andrade admira a capacidade de furtar “as palavras à usura do tempo” e admira os poetas, como ele diz, que comunicam uma energia às palavras, energia “capaz de as fazer resistir ao confronto com o mundo; tal como faz o oleiro com o barro, ou o ferreiro com o ferro”. É dessa “consciência artesanal” de que se orgulha, para além da vocação e paciência para escutar. A contenção na fala como efeito da generosidade na escuta, eis uma possível formulação, uma espécie de equação que define a base de “À Sombra da Memória”, livro de prosa acerca do qual escrevi este texto.

A escrita de Eugénio de Andrade lembra muito esse mítico andar de pedra em pedra atravessando um riacho. O pé não pode falhar porque não há pedra em todo o chão – noventa por cento do chão é água. Estamos pois perante a necessidade de ser certeiro, como quem atira a um alvo. De pedra em pedra o corpo, ele mesmo por inteiro, tenta, ora com um pé ora com o outro, acertar no único ponto próximo do mundo, vasto mundo, de onde não se cai, o único ponto que é chão firme (chão firme: aquilo que possibilita o passo seguinte). E assim se avança com a precisão que evita a queda e a energia que nos conduz, sem lentidão nem pressa, às clareiras sensatas que no mundo ainda há.

Passo a passo se vai fazendo a escrita com a exactidão que é nesta actividade palavra referência que substitui palavras religiosas ou outras bem mais profanas indicações de escrita. “Era um poeta, odiava tudo o que não fosse exactidão”, diz Rilke citado por Eugénio de Andrade.

Mas não se confunda exactidão na escolha do vocábulo com temperaturas emocionais baixas, como tanto se faz; parecendo por vezes que a emoção é coisa de muito movimento e muito grito por segundo e quanto mais por segundo se grita, chora ou ri mais emoção se tem. Mas não. Talvez a mais importante das emoções seja afinal coisa feita para durar; sentir durante muito tempo, eis o que é difícil. Sentir muito em pouco tempo: o fácil. Quem não o consegue?

Neste livro, Eugénio de Andrade faz referência aos dois mandamentos opostos que Braque teria formulado: “Amo a regra que corrige a emoção”, primeiro; e depois: “Amo a emoção que corrige a regra.” Talvez perante estes dois mandamentos não se exija uma decisão que envolva a exclusão de uma ideia em detrimento de outra e nem sempre a idade levará o homem para a mesma casa final. O que importa realmente é esta sensação de mistura; mistura exacta, como a feita num laboratório: combinação entre emoção e regra, ofício de paciência (título de um dos textos) e sensatez.

Falando de quadros, amigos ou cidades o discurso é sempre claro. Cada passo dado é fruto de uma decisão antiga que, por vezes, parece mesmo vinda de outros tempos, como se fosse possível uma frase habitar uma cabeça vários anos antes de a mão a tornar visível no mundo. Precisamente, como se a emoção viesse de muito longe (e vem, sente-se, vem da infância).

Eis o que talvez mais importe em tudo isto, de entre a confusão do tráfego do mundo. O que temos, em cada um destes textos de Eugénio de Andrade, não é uma emoção que chegou ontem, apressada, do comboio. A emoção expressa-se com a calma de quem há muito veio e não pensa partir tão cedo. Eis a emoção distribuída pelo tempo. A que empresta ao discurso, não a paixão apressada e fácil, mas a serenidade afectiva que admiramos.

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[27-10-2013]