Desenhar a ciência

Pedro Correia/Global Imagens

Fernando Correia é um dos mais conceituados ilustradores científicos do mundo. Já recebeu vários prémios e este ano foi convidado pelas Nações Unidas para desenhar quatro selos da coleção animais em vias de extinção. A arte de traduzir a ciência ao serviço da proteção das espécies e da humanidade.

Para chamar a atenção para os problemas que afectam as populações e o planeta, a ONU convida regularmente designers e artistas consagrados a desenhar selos postais temáticos, que depois serão usados na correspondência (incluindo a que é expedida a partir dos escritórios da organização) e que fazem o deleite de coleccionadores e filatelistas. Tudo porque cada selo é uma obra de arte em miniatura. Os 12 selos da última emissão – «Espécies Ameaçadas de Extinção» – são disso exemplo.

Quatro destes selos foram desenhados por um ilustrador científico português. O tapir-da-Malásia, o gato-de-cabeça-chata, também da Malásia, o lémur-mangusto e o aye-aye, ambos de Madagáscar, têm o dedo de Fernando Correia, biólogo, professor no Departamento de Biologia e coordenador do Laboratório de Ilustração Científica da Universidade de Aveiro. «São quatro mamíferos noturnos que figuram entre as espécies que poderão desaparecer em breve, caso nada seja feito para as preservar. Na base da destruição dos habitats destes animais está a actividade humana, a caça, as queimadas e a expansão agrícola.»

O convite da Administração Postal das Nações Unidas (APNU) chegou em junho passado e o ilustrador diz que foi por um triz que não apagou o e-mail: «Pensei que era spam .» Mas não. A confirmação surgiu poucos dias depois, em conversa telefónica com Sergio Baradat, director de arte do APNU, que se mostrou grande conhecedor do trabalho do português. «Foi uma honra receber este convite e é um privilégio poder associar-me às Nações Unidas e dar um pequeno contributo para sensibilizar as pessoas de todo o mundo para a importância de preservar as espécies em perigo. Tive um mês para fazer o trabalho, mas só podia aceitar.»

Um mês é pouco tempo. Até porque o trabalho de um ilustrador científico é duplamente exigente. «O que eu faço não é arte, é ciência. Uso as ferramentas da arte para traduzir o discurso científico através de uma narrativa gráfica e esse é um trabalho que exige muita pesquisa, investigação e o estudo das espécies. Além do lado técnico e estético, a ilustração científica tem de ter credibilidade. Cada imagem tem um valor documental.»

Fernando Correia deu os primeiros passos no mundo da ilustração científica quando estudava Biologia, na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, mas o gosto pelas artes já antes se tinha revelado: «Sempre gostei de desenho e pintura e sempre gostei muito da natureza. Durante o curso tínhamos de fazer desenhos descritivos das plantas e tecidos que observávamos ao microscópio e eu esmerava-me na representação do que via. Com a ajuda de alguns professores, percebi que a ilustração científica me permitia articular a ciência com a arte.»

E esse foi o caminho que escolheu em 2004, depois de alguns anos dedicados ao estudo e à investigação, na Universidade de Coimbra, onde ainda fez o mestrado. Vinte anos passados, Fernando Correia é um dos mais conceituados ilustradores científicos portugueses e um dos melhores do mundo. «Já fiz de tudo um pouco, mas do que gosto mais é da ilustração zoológica, sobretudo insectos, aves e mamíferos. Mais recentemente, descobri a ilustração paleontológica.» E o que o ilustrador também descobriu foi o gosto pelo ensino. Em 2011, o professor Amadeo Soares, director do Departamento de Biologia da Universidade de Aveiro, desafiou-o a criar um curso de ilustração científica que já está a dar que falar no universo académico por ser um dos poucos que existe num departamento científico. «Geralmente, a ilustração científica está nas faculdades de belas artes. Aqui não, estamos rodeados de ciência. Recebemos alunos de biologia, medicina, belas artes, design, arquitectura… é uma diversidade que enriquece. Temos alunos com trabalhos muito interessantes e alguns já foram seleccionados para exposições internacionais.»

Autor de dezenas de publicações, incluindo artigos científicos e vários livros, todos os anos Fernando Correia expõe em diversos países e está habituado a ver o seu trabalho reconhecido em Portugal e no estrangeiro. Entre os prémios que já recebeu, destaca-se o Focus On Nature VIII Natural History Illustration Award , atribuído de dois em dois anos pelo New York State Museum ; o Grande Prémio Stuart de Imprensa Nacional El Corte Inglês 2005, que distinguiu pela primeira vez uma ilustração científica (cetáceos dos Açores), e ainda o Best Edit pela National Geographic Internacional , com uma ilustração paleontológica de um plesiossauro (um réptil marinho gigante do tempo dos dinossauros), que foi publicada na edição portuguesa da revista. A última distinção veio da Câmara Municipal de Cascais, com o Prémio Museu do Mar Rei D. Carlos 2013, que agraciou o livro Macroalgas Marinhas da Costa Portuguesa – Biodiversidade, Ecologia e Utilizações . A obra, em co-autoria com Leonel Pereira, professor na Universidade de Coimbra, estuda os principais vegetais marinhos que podem ser encontrados na nossa costa, informa sobre o seu uso nas indústrias alimentar e farmacêutica, na cosmética e da saúde. Das cem ilustrações científicas, muitas foram feitas por jovens ilustradores científicos convidados pelo mestre.

 

Fernando Correia
Uma das ilustrações feitas por Fernando Correia, na sequência do convite da ONU para desenhar quatro selos de uma coleção sobre espécies ameaçadas.

OS SELOS DA PAZ
Desde que a foi criada, em 1951, a Administração Postal das Nações Unidas (APNU) lançou mais de mil selos, quase todos desenhados por artistas consagrados de vários países do mundo e muito apreciados e valorizados pelos coleccionadores. Em regra, os selos da ONU ilustram e reflectem os temas trabalhados pela organização – os direitos humanos, a paz, as espécies ameaçadas, o ambiente, a promessa de um mundo melhor – e são vistos como obras de arte em miniatura. Uns apelam à emoção, outros reflectem esperança ou desespero, tristeza ou alegria. Também há os que simbolizar um acontecimento. Todos chamam à reflexão.

Para a história da APNU ficam os selos emitidos em 1991 para comemorar o nascimento da Namíbia como nação independente; o de 2002, ONUSida, que quis chamar a atenção para o alastrar de uma epidemia que ainda afecta 35 milhões de pessoas em todo o mundo e já matou outras tantas; as várias colecções sobre a fauna e a flora em vias de extinção, entre muitas outras.

Além dos estados, a ONU é a única organização do mundo autorizada a emitir selos postais e é também é a única autoridade postal a emitir selos em três moedas diferentes: euro, franco suíço e dólar americano. Lançados em simultâneo pelos escritórios da ONU em Nova Iorque, Genebra e Viena, são usados na correspondência expedida pelos diferentes escritórios e agencias da ONU e podem ser adquiridos através do site unstamps.un.org ou de revendedores.