Conhece a geração touch screen?

Natacha Cardoso/Global Imagens

Em poucos anos, os tablets deixaram de ser «brinquedos» exclusivos dos adultos e passaram para as mãos das crianças. Literalmente. Intuitivos, interativos e de fácil utilização, dão novo significado ao conceito de «nativos digitais» e criam uma nova geração: a touch-screen generation.

Quando era miúda, faltava uma eternidade para o ano 2000, não existia internet, os telefones eram todos fixos, com um auscultador e um disco que se rodava para marcar o número. A televisão só tinha dois canais. Através dela e de séries como Galáctica, Espaço 1999 e Star Trek ou de filmes como 2001 Odisseia no Espaço e Guerra das Estrelas, deixávamo-nos fascinar por um futuro inacessível, em que os heróis falavam uns com os outros, cara a cara [face to face, se é que me faço entender], em grandes ecrãs de computador ou através de zingarelhos que, no nosso limitado horizonte de referências tecnológicas, se assemelhavam a walkie-talkies ultrassofisticados. Mais tarde apareceu o ZX Spectrum, um teclado que se ligava à televisão e tinha jogos que vinham em cassetes – como o Pacman, o Chuckie Eggs ou o Space Raider -, que demoravam horas a arrancar e em que uns amigos nos deixavam jogar de vez em quando. Descobri agora, em segundos, pesquisando no Google, que o antepassado mais longínquo dos jogos de computador foi lançado em 23 de abril de 1982, tinha eu 8 anos. A mesma idade com que o João, de 9 anos, convenceu a irmã Rita, de 6, a juntarem os dinheiros dos respetivos mealheiros para comprarem um tablet.

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Não tenho tablet, mas os meus filhos têm. Os amigos tinham, eles também queriam. Há coisas que nunca mudam. Outras mudam de forma extraordinária. Os segundos que me levaram a dar com a idade do ZX Spectrum no Google foram os que o João e a Rita demoraram, mal desempacotaram o novo brinquedo, a descobrir na ponta dos dedos as aplicações de que «precisavam», a instalá-las, a explorá-las, a jogar, a tirar fotografias, a filmar, a ouvir música no YouTube, a falar pelo Skype ou a pesquisar no mesmo Google que eu. Desde que o pequeno ecrã tátil entrou, as portas de casa, o meu computador portátil, o Magalhães, a Wii, os legos, os livros, as Nancys e os outros brinquedos devem ter-se sentido como as personagens do Toy Story 3, quando o Andy foi para a universidade. E não só eles. O «mãeeeeeeeee» passou a ser muito mais usado para resolução de conflitos do que para pedir companhia nas brincadeiras. Daí que, quando me puseram na secretária de trabalho uma reportagem da revista norte-americana The Atlantic, com o título Touch-Screen Generation, respirei de alívio. Não estava sozinha no mundo. Nem no nosso pequeno país.

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AGORA PODEMOS SER TODOS NATIVOS DIGITAIS
O Afonso tem 14 meses e aos 6 o avô deu-lhe um iPad de presente de Natal. Agora, não raras vezes dão com ele a tocar com o dedo no ecrã de televisão. O Vasco tem 22 meses e, sentado no chão, dança de braços no ar a música que, sozinho, pôs a tocar no iPad do pai. O Gonçalo tem 3 anos e uma cara de reguila que desarma ao adormecer a ver os filmes do Ruca. O pai está ao lado, mas é ele que os encontra. O Martim tem 8 anos e, uma vez conquistada a posse do iPad, não levanta os olhos, nem a mão, do ecrã. Adora jogar e diverte-se à brava com vídeos de apanhados. O Bruno tem 9 anos e uma paixão por animais, que estão agora todos ao alcance do seu dedo, através do qual gere um jardim zoológico. A Sara, 9 anos, e o André, 6, têm autorização para, aos fins de semana, usarem o iPad dos pais. Os computadores lá de casa tiveram descanso. O pequeno ecrã tátil em que ao toque de um dedo aparecem e desaparecem janelas destronou-os rapidamente, assim como aos lápis, tintas, papéis, puzzles e outros jogos. A Sara gosta de desenhar e tem nas mãos uma infindável paleta de cores. O André tem o comando de uma equipa inteira de futebol. O João e a Rita, que já foram apresentados e completam o grupo de nove crianças que se juntaram num domingo de manhã para a fotografia, têm em mãos não só o mundo que o tablet lhes oferece como a tarefa de aprenderem a partilhá-lo. Quando conseguem, ela fotografa e apanha moedas desviando-se de comboios a alta velocidade, ele anda de skate, quer ter Facebook (ainda não tem nem terá tão cedo) e é sócio do Bruno na gestão do jardim zoológico.

Se há três anos, quando, em abril de 2010, o iPad foi lançado pela Apple – logo seguido pelos tablets, desenvolvidos por várias marcas a operar no mercado mobile – a minha infância pertencia à pré-história, hoje aproxima-se a passos largos da era jurássica. Não é com dificuldade que me reconheço na definição de «imigrante digital», criada por Marc Prensky, autor de livros sobre educação e tecnologia, que em 2001, no seu livro On the Horizon, criou o conceito de «nativo digital» para questionar o sistema de educação norte-americano. Segundo ele, a nova geração – para quem telemóveis, computadores, internet, jogos de vídeo, PlayStations, câmaras digitais sempre existiram – dominava naturalmente a linguagem digital e, nessa medida, tinha um quadro mental diferente dos pais e professores, os tais «imigrantes digitais». Aqueles que, não tendo nascido num ambiente tecnológico, integraram a tecnologia nas suas vidas, adaptando-se a ela, mas mantiveram um «sotaque» próprio dos imigrantes, facilmente detetável em comportamentos como imprimir e-mails ou preferir uma biblioteca à internet quando se trata de procurar informação. Na sua perspetiva, este fosso entre gerações refletia-se negativamente na educação e era preciso resolvê-lo. Quando vemos bebés, como o Vasco e o Afonso, mexer no iPad com uma destreza que nos faz corar, «nativos digitais» é a expressão que nos vem imediatamente à cabeça. Mas terá a tecnologia touch-screen dos iPads e tablets, mais facilmente «nacionalizáveis» pelas crianças do que os pessoais e intransmissíveis iPhones e smartphones já existentes, vindo acentuar ou diminuir o fosso?

Cristina Ponte, professora e investigadora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e coordenadora portuguesa da EU Kids Online, rede europeia que estuda o uso dos novos media pelas crianças, sendo crítica do postulado por Prensky, por considerar que não se nasce digital e que o fosso não é uma inevitabilidade, defende que agora então, com os iPads e os tablets, todos somos nativos digitais em potência. «Sem o obstáculo dos teclados e dos ratos e com uma navegação muito mais simples, quase intuitiva, os ecrãs táteis permitem a inclusão digital tanto dos mais novos como dos mais velhos. Constituem uma grande mudança e um fator de aproximação de gerações. Avós e netos podem partilhar brincadeiras, pesquisas e sobretudo aprender uns com os outros.»

O DEDO NÃO É PARA CHUCHAR
A aplicação para bebés que Cristina Mesquita, diretora adjunta de publicidade, e João Nogueira, da área de marketing de telecomunicações, pais do Vasco, desenvolveram, com a ajuda de um amigo programador, para iPhone e iPad também é uma forma de aproximar gerações [ver caixa «Os pais do Vasco inventaram uma app»]. Chama-se Baby Learning Family e está à venda na AppStore por 1,79 euros. «Já vendemos algumas dezenas de unidades, mas não ficámos milionários, como gostaríamos», brinca João. A concorrência é mundial e são dezenas de milhares as apps já desenvolvidas para crianças e bebés. Há mesmo sites, como o www.appysmarts.com, que se dedicam à sua análise e classificação para aconselharem e guiarem os pais neste complexo e ultrapovoado universo.

Os pais agradecem e, na opinião de João, não se importam de pagar, apesar da concorrência das aplicações gratuitas, se estiverem certos de que a aquisição é pedagógica e adequada à idade. Lá em casa, há dois iPhones e dois iPads, são dos pais, mas desde a amamentação, momento que a mãe aproveitava para navegar, que Vasco tenta deitar-lhes a mão. Com 6 meses já fazia o gosto ao dedo, mas pouco, «porque um objeto destes é caro de mais para brinquedo», explica Cristina. «Eles querem fazer tudo o que nós fazemos, por isso o iPad foi sempre muito cobiçado pelo Vasco. Hoje, com 22 meses, já mexe com um à-vontade impressionante. Procuramos instalar aplicações didáticas que sabemos que consegue utilizar e ele é completamente autónomo na navegação. Mas, por exemplo, na escola tem aulas de informática para bebés e a única coisa que faz é bater com as mãos no teclado», conta João. O iPad, no entanto, é tratado com muito cuidado e nunca, mas nunca, atirado ao chão como brinquedos e livros. Quanto a regras, é só uma: não há tecnologia uma hora antes de ir para a cama. De resto, é difícil mantê-lo longe do «brinquedo» dos pais, até para o entreter, quando precisam de fazer outras coisas. «Vai falar com algum pediatra sobre o impacte que isto poderá ter no futuro?», pergunta João. Sim [ver caixa «A opinião de Eduardo Sá»].

E uma das preocupações do psicólogo Eduardo Sá tem que ver com «o deslumbramento dos pais, que pode levá-los a perder o jeito afoito de definir regras, acabando “engolidos” pelas dos filhos». O que talvez possa interessar a José Valente, piloto, e Sara Valente, assistente de bordo, pais do Afonso, de 14 meses, que já anda, mas ainda gatinha, indeciso entre a mãe, o pai e o iPad que o avô lhe ofereceu no Natal. É com natural orgulho e embevecimento que os pais descrevem as proezas do seu bebé, que não só já consegue desbloquear o iPhone paterno, como é capaz no seu iPad de escolher com o dedinho as aplicações favoritas e brincar com elas. «O que mais lhe interessa é a cor e a música, mas adora um jogo de rebentar balões. Quando consegue, fica todo contente a bater palmas.» Regras e preocupações estão guardadas para o futuro próximo. «Não queremos que fique viciado, claro, mas achamos que o importante é que ganhe aptidões e esteja preparado para o mundo tecnológico em que vai crescer. Quanto às regras, serão criadas. Por enquanto é ele que manda, não somos ainda nós.»

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O Gonçalo, claramente o mais mandão destes nove miúdos, não manda nos pais. A Tânia Vicente, que é psicóloga, e o Hugo Brito, que trabalha em marketing, deixaram bem claro desde o início que o iPad era propriedade paterna. Quanto maiores as birras, menor o acesso ao desejado gadget. Mas ainda que a utilização seja escassa, e sobretudo para adormecer, quando a tarefa calha ao pai, com música do José Cid ou um filme do Ruca, o pequeno de três anos domina o ecrã tátil como se o explorasse todos os dias. E se quisermos vê-lo sossegado, é passar-lho para mãos.

UMA ESPÉCIE DE MAGIA
O que é a tecnologia touch-screen terá que os miúdos nem a estranham, entranham-na logo? A investigadora Cristina Ponte encontra a resposta no seu funcionamento simples e intuitivo. «Não implica literacia informática e é muito natural. A criança maneja com o dedo e obtém uma consequência imediata. É uma espécie de magia, a mesma que funciona na vida real e faz os bebés aprenderem e explorarem o mundo. Pode ser, portanto, uma forma extremamente rica de a criança realizar descobertas e aprendizagens, mas, atenção, não deve ser a única», alerta, não perdendo a oportunidade de contar a experiência relatada por uma aluna num trabalho académico. «Comparava duas crianças de 4 anos. Uma era filha de dois web designers, tinha a casa cheia de tecnologia e sempre tinha usado o tablet. Outra, por decisão dos pais, crescia num ambiente ligado à natureza, a brincar na terra e sem qualquer acesso a tecnologia. No entanto, quando lhe puseram um tablet à frente, explorou-o da mesma forma, com a mesma facilidade e o mesmo prazer que a primeira.»

O neurocientista Rui Costa, investigador principal do Programa de Neurociências da Fundação Champalimaud, esclarece que pode ser mais fácil para uma criança explorar o mundo através de um ecrã tátil do que verbalizando o que quer. Daí que esta seja uma tecnologia acessível a bebés, mas também a crianças com deficiência que, mesmo não sabendo falar, o exploram com uma destreza que abre portas e fascina a família. É o caso da Catarina, de 3 anos, portadora de trissomia 21, e prima da Sara e do André. «Os humanos têm a capacidade de utilizar instrumentos e é o cérebro que aprende a controlá-los, incorporando a sua dinâmica, quase como se estes fossem uma extensão das próprias mãos. E se os instrumentos nos permitem estender a capacidade do que o nosso organismo e cérebro podem fazer ou armazenar, claro que isso também se aplica a tablets e iPads.»

Será essa abertura de horizontes e aumento de capacidades uma das razões que leva os pais a partilharem com os filhos aparelhos tão caros, que mais do que qualquer outro gadget deixaram de ser pessoais para se tornarem familiares.

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É o caso de Pedro Botelho, diretor adjunto de arte da Notícias Magazine, e da mulher, Ana, fisioterapeuta. O iPad é para eles um instrumento de trabalho e foi um investimento, por isso a Sara e o André sabem perfeitamente quem são os proprietários do dito e de quem é o direito de preferência. Apesar disso, podem usá-lo nos fins de semana: «Quando acabamos os trabalhos de casa», explica Sara, com todas as letras. Os pais controlam e acompanham a utilização, gerem a instalação de aplicações e por vezes fazem-nos esperar, para lhes treinar a tolerância à frustração, mas sabem que a coisa foi concebida para a nova geração. «O iPad é nosso, mas tenho consciência de que é uma linguagem muito mais deles. Nos jogos, sobretudo, nós não conseguimos acompanhar, é demasiado rápido. Por outro lado, permite-lhes desenvolver capacidades como nenhuma outra tecnologia. Por exemplo, em termos de desenho e fotografia é fantástico.»

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A jornalista Sónia Morais Santos e o marido, Ricardo Branco, diretor comercial, também têm o iPad «nacionalizado» pelos três filhos, a Madalena, de 3, o Martim, que já conhecemos, e o Manuel, de 11 anos. Apesar de só terem livre trânsito ao fim de semana e não poderem «estar muito tempo naquilo», a dividir por tantos é mais complicado. Enquanto o mais velho o usa sobretudo para o Facebook e para o Football Manager, «que é o seu paraíso» e o do meio é «viciado em jogos vários», a mais nova não precisa de saber ler nem escrever para chegar a todo o lado. «Ela, que não tem qualquer interesse pelo computador porque está sempre a precisar de ajuda, adora o iPad e sabe exatamente onde clicar. Gosta de jogar, de ver os Rucas e os Pandas desta vida e de ir à App Store procurar novos jogos. Já sabe que só gratuitos. Acho, aliás, que já reconhece a palavra “gratuitas” e sabe que é dali que pode cravar.» Embora considere que há aplicações e mesmo jogos que são excelentes ferramentas para lhes desenvolver a rapidez e a perspicácia e que o Facebook é incontornável no mundo deles, Sónia continua a preferir que leiam livros e que estejam fisicamente com os amigos, na rua, a brincar.

Uma coisa não tem nem deve excluir a outra, defendem, unânimes, a investigadora Cristina Ponte, o psicólogo Eduardo Sá e o neurocientista Rui Costa. Experiências diversificadas são fundamentais para crescer e desenvolver competências.

JARDIM COM MUROS
«Mas também há que educar e formar para o uso destas tecnologias» alerta Cristina Ponte. O acesso à internet em tablets e smartphones cria todo um novo paradigma de utilização por parte dos mais novos que tem vindo a levantar novas questões à rede que a investigadora coordena em Portugal: «A internet hoje está muito mais móvel. Ainda não temos dados, porque é um fenómeno recente e em constante evolução, mas põe em causa a perspetiva de que os pais podem controlar tudo o que os filhos fazem online, o que levou a uma reorganização do discurso em relação à segurança, que neste momento se centra mais em capacitar as crianças e adolescentes para que façam uso consciente da internet – por exemplo, transmitindo a ideia “pensa antes de teclares e publicares”.» A família tem um papel fundamental para esta capacitação, na opinião da investigadora, dando às crianças a noção da responsabilidade, a consciência de que uma mensagem no Facebook não é a mesma coisa que uma «boca» no recreio da escola e fazendo-lhes ver que não podemos magoar os outros. «No fundo, trata-se de educar para a ética, tendo em vista os novos media que fazem parte do quotidiano deles». Quanto aos mais novos, a segurança passa por uma supervisão atenta dos conteúdos a que acedem, porque muitas vezes, mesmo sem querer, se explorarem demasiado autonomamente, podem ir para conteúdos indesejáveis e que os perturbam. «Trata-se de criar um jardim com muros.»

Foi o que Margarida Pedreira percebeu recentemente. O Bruno já tem 9 anos, mas só tem o tablet há seis meses. Todos os dias, antes do jantar, enquanto a mãe o prepara, diverte-se com os seus jogos preferidos e explora o seu novo brinquedo. Os seus grandes interesses são os animais e a música e recentemente uma pesquisa no YouTube em busca de baleias (não necessariamente perdidas no oceano) levou-o a imagens que preferia não ter visto e até o fizeram dormir mal. As baleias eram humanas e do género feminino. A partir daí, Margarida, passou a estar muito mais atenta. «Tive uma conversa com ele e expliquei-lhe que é preciso ter cuidado, mas passei também a ver todos os dias o histórico do que ele pesquisa, para não ter mais surpresas. Achámos que o tablet era útil para o Bruno se ir familiarizando com as novas tecnologias. E ele usa sobretudo para os jogos de animais, para ver o National Geographic e fazer os trabalhos de casa, mas há mesmo que ter cuidado.»

Raramente as expetativas dos pais relativamente ao uso que os filhos dão a estes novos media são correspondidas. Os estudos da EU Kids Online demonstram que os miúdos portugueses usam a internet sobretudo para jogar e estar em contacto com os amigos, atividades que não divergirão das desenvolvidas nos tablets e iPads. Mas também os receios são quase sempre infundados: «Portugal não é dos países em que as crianças declaram mais riscos na internet.»

Esta imigrante digital que sou eu, mãe de dois nativos, exemplares equipados da touch screen generation, impõe tempos de utilização, mas confessa, até porque muitas vezes se perde na tradução, dá-lhes demasiada rédea solta no que à instalação de aplicações e exploração de conteúdos diz respeito. Pelo sim, pelo não, espero ardentemente que a Rita continue a dizer que não quer ter Facebook «porque há lá pessoas que não conhecemos e nos perguntam onde vivemos e nós não podemos dar a morada». Quanto ao João, que se pudesse, diz, passaria 24 horas agarrado ao tablet, gostaria de ter tido tempo de fazer a experiência levada a cabo pela jornalista da The Atlantic. Durante seis meses, propôs-se deixar o filho mais novo usar o iPad sempre, mas sempre, que quisesse, até enquanto tomava o pequeno-almoço e se vestia, antes de ir para a escola. Resultado: após dez dias de utilização intensa diária, o pequeno ecrã tátil foi largado no cesto dos brinquedos, como se fosse um deles.

A OPINIÃO DO PSICÓLOGO EDUARDO SÁ
As crianças, desde muito pequenas, passam cada vez mais tempo com tecnologias digitais. Que consequências terá isso no seu desenvolvimento?
As novas tecnologias são, simplesmente, lápis mais caros. Fantásticos e estimulantes, todavia. Daí que uma utilização precoce desses instrumentos – contabilizando custos e ganhos – tem mais ganhos do que custos. Mas essas «contas» dependem da sensatez dos pais, que não podem fazer com as novas tecnologias o que fizeram com a televisão, usando-a como uma espécie de babysitter, quando era preciso entreter as crianças, para, depois, se alarmarem, reivindicando contra os desenhos animados… violentos.

Que regras devem os pais estabelecer, então?
É importante que possam estar por perto, sempre que a criança utiliza esses recursos, reservando-se a função de «entidade reguladora». É razoável que esses instrumentos tenham uma função lúdica e formativa mas que não representem ansiolíticos digitais da nova geração. Podem ser enciclopédias, janelas sobre o mundo ou instrumentos de comunicação, mas nunca os melhores amigos do tédio. É importante que os pais digam não ou sim a um ou outro conteúdo, de acordo com a sua intuição e bom senso.

Como se explica que miúdos de 1 ano, que mal sabem falar, consigam já explorar com o dedinho uma tecnologia tão sofisticada?
As crianças são atentas e intuitivas, sábias e acutilantes. As crianças de 1 ano não são, hoje, mais espertas. Nós é que as estragamos menos. E, em função disso, elas ousam ser curiosas, reivindicam «a vista na ponta dos dedos» como uma conquista milenar da humanidade e, muito antes de saberem falar, sabem interpretar, compreendem, analisam e sintetizam. O único aspeto que me preocupa tem que ver com o deslumbramento dos pais, que pode levá-los a perder o jeito afoito de definir regras, acabando, embalados pelos filhos presumivelmente geniais, a ser «engolidos» pelas regras deles.

Em que medida o deslumbramento é contraproducente?
Quanto mais amadas são as crianças, mais afoitas se tornam. Quanto mais afoitas, mais engenhosas, mais reivindicativas e mais subtis no seu jeitinho de dar uma configuração muito pessoal às regras dos pais. Sendo assim, é importante que os pais não percam de vista que nunca se educa com bons conselhos, mas com bons exemplos. E que quem os dá tem toda a legitimidade para exigir, de forma firme e serena, que as regras se cumpram, mais do que se negoceiem ou discutam.

Que tipo de competências desenvolvem nos miúdos estas novas tecnologias?
Aprendem a resolver operações mentais muitíssimo antes de aprenderem a aritmética e a matemática. Aprendem a perceber que pensar duas vezes antes de falar ou de agir é uma atitude mais amiga da impulsividade do que pode parecer. Aprendem a ter atenção. Aprendem a fazer sínteses. Aprendem, aprendem, aprendem.

Quais são os maiores riscos?
Virem a barricar-se numa espécie de solidão assistida, como tantos adolescentes doentes que, não conseguindo sentir, cheirar, interpelar, tocar, discutir com os outros, ou con-sentir e con-viver, são levados a supor que o mundo digital substitui o mundo das pessoas e o mundo à nossa volta, como se, apesar das novas tecnologias, o crescimento não fosse, como as tradições: ainda é o que era.

Faz sentido que miúdos pequenos já tenham o seu próprio tablet?
Claro que não. É preciso crescer muito, e subir muitos degraus de brinquedos, para vir a merecer brinquedos tão sofisticados, tão complexos e tão caros. Aprender a desejar e, movido pela esperança, a conquistar um desejo é aprender a lutar por crescer; ter o crescimento sem desejo, sem luta e sem esforço é presumir que tudo nos é devido.


Leia também: «Tablets só devem vir depois dos cubos»


OS PAIS DO VASCO INVENTARAM UMA APP
A pensar nele e em ajudá-lo a reconhecer, identificar e interagir com os familiares e amigos mais próximos, Cristina e João inventaram o Baby Learning Family, uma app educativa, de navegação simples e divertida, sob a forma de jogo. À semelhança de um álbum fotográfico, cada página apresenta várias fotografias possíveis que o bebé deverá escolher para responder a perguntas como «Onde está a avó?» ou «Onde está o papá?». Ao selecionar o elemento da família, tocando na sua imagem, fará aparecer um pequeno filme ou uma gravação personalizados, especialmente dirigidos a ele e que foram previamente configurados. Disponível na App Store.