Ainda acredito que possamos resolver aquilo que há a resolver. Nas viagens que faço com a música às costas, percebo que são mais as coisas que nos unem do que as que nos separam. Por isso, ainda acredito que havemos de achar maneira de conviver pacificamente. Daquilo que me é dado perceber, somos todos feitos da mesma matéria e os nossos desejos e pulsões não variam grandemente, quer se seja norueguês, búlgaro, espanhol ou sul-africano.
A forma como lidamos com esses desejos e pulsões, essa sim, pode diferir um pouco. Mas, no fundo, serão apenas pormenores, comparados com a profundidade e a importância das qualidades e características que nos aproximam. É por isso que me parece tão trágico que aquilo que nos diferencia nos leve por vezes a sucumbir à intolerância e à desunião e a reagir de forma exclusiva ou violenta. Em tempos conturbados, tudo piora; a mínima coisa serve para que nos convençamos de que o outro é uma ameaça e tenhamos medo dele e da sua diferença.
Precisamente quando mais precisamos de nos unir, quando surgem as maiores dificuldades, é quando mais nos fixamos nessas diferenças e as hostilizamos de tal maneira a torná-las incompatíveis com as nossas próprias opções de vida. Isto é habilmente cultivado e manipulado pelo poder instalado em seu favor para que não se procure combater aquilo e aqueles que realmente constituem um perigo à nossa existência digna e humanizada, portanto pacífica. O facto de vivermos uns contra os outros faz que não consigamos juntar-nos em prol de coisas que importam para o bem-estar de uma maioria que certamente nos incluirá.
A rejeição do outro não só não torna a nossa vida melhor, como constitui um dos maiores impedimentos a que possamos de facto ter melhores condições de vida. E, depois, as dificuldades do dia-a-dia tornam mais difícil que possamos parar e repensar posturas e pensamentos. É mais fácil colocar a culpa do que nos possa acontecer de mal no vizinho do lado, porque chega tarde, porque nunca sai. Porque vai à igreja, porque nunca vai à igreja. Porque tem uma tatuagem. Porque trabalha no público. Porque trabalha no privado. Porque é trabalhador por conta de outrem, porque é trabalhador independente. Porque é conservador, porque é progressista. Porque é do Benfica, porque é do Porto, porque é do Sporting. Como se essas escolhas fossem justificação para a nossa antipatia para com as pessoas. Afinal, do que não gostamos, delas ou das suas escolhas? Se tanto falamos de quão importante é viver em democracia, não deveríamos ter maior empatia para com o outro e para com as suas escolhas?
A liberdade de escolha é um dos fundamentos da democracia, pelo que será preocupante que vivamos tempos em que se defenda a redução de escolhas de vida e o nivelamento por baixo como algo positivo e enquanto factor de progresso ou de saída das dificuldades em que nos encontramos. De tal forma nos pusemos uns contra os outros que basta observar as redes sociais e ver como uma mensagem ou um comentário pode bastar para que se inicie uma batalha campal de agressões verbais e comentários impróprios, que não se preocupam em procurar entender o ponto de vista do outro, mas antes condená-lo à proscrição. Importa pensar em conjunto, ao invés de rejeitar o que o outro possa ter a dizer, mesmo que nos soe como a coisa mais errada do mundo. Importa argumentar, ao invés de insultar. Importa que nos lembremos de que há mais coisas que nos unem do que nos separam. Agora, mais do que nunca.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[22-09-2013]