1.
– A realidade, portanto.
– Sabe o que me parece? Quem não come por ter comido não tem doença de perigo.
– Como?
2.
– Este buraco ficou um pouco grande.
– Vou pôr lá a cabeça.
– Força.
O Senhor Excelência fica com a cabeça presa no buraco. Não a consegue tirar.
– Fiquei com a cabeça presa!
– Ok. Manual de instruções.
– Não quero ficar aqui com a cabeça presa.
– Manual de Infantaria. De 1912. Instruções. Vou saltar as primeiras páginas. De acordo?
– De acordo. Mas rápido – estou com a cabeça presa num buraco na parede.
– Passo a ler:
«Logo que uma investida atinge o alvo, é preciso libertar a baioneta o mais depressa possível, arrancando-a do corpo adverso…Para a arrancar, puxar violentamente a arma para trás, com as duas mãos, se necessário deslocar as mãos para as levar mais à frente e ajudar com o pé posto sobre o adversário.»
Como tirar a baioneta do corpo do adversário. Instruções.
– Para que me está ler isso?
– Pense que a sua cabeça é a baioneta e a parede o corpo adverso, que é uma bela expressão. Pois bem. Ponha um pé na parede e faça força. Isso! Ora aí está – vê?!
– Tirei a cabeça do buraco.
– Manual de Infantaria. De 1912. Instruções.
3.
– Morto?
– Mortíssimo.
– Teimosamente irreversivelmente irrevogavelmente?
– Mais morto do que isto não há.
– Este está mais morto do que aquele. É isso?
– É isso. Dois mortos. Um menos, o outro, mais.
4. Sobre dois escritores
Vergílio Ferreira
Uma escrita que pensa. Um pensamento que narra.
Em nome da terra, por exemplo, um romance em que a ironia está sempre presente. Sobre a piedade:
«A piedade é um prazer de quem a tem mas só se a coisa se resolve depressa. Mas como ter piedade por um doente que se não despacha e abusa imenso tempo até se decidir a morrer? Piedade nesses casos, minha querida, só para piedosos profissionais como as freiras que a contabilizam para o saldo no eterno.»
Carlos de Oliveira
O livro Finisterra. Uma escrita exacta onde tudo o que poderia estar a mais se evaporou. Uma escrita-reescrita.
Era alguém que não parava de retocar os textos. Cada reedição era uma nova edição. Sempre à procura daquilo que já é o último passo da prosa, aquilo que ninguém pode já eliminar. E os seus textos: sempre a meio passo entre prosa e poesia. Prosa porque narra, poesia pelo que esconde e pelo que acerta.
GONÇALO M. TAVARES ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[10-11-2013]