Apropriações musicais indevidas

Notícias Magazine

Ouço na rua, ao longe, uma canção dos Deolinda a pas­sar, de um lado para o outro. Ao mesmo tempo, penso para comi­go que uma das características da música popular (e não só) é o facto de se inscrever no seu tempo e, por isso, ser como que um re­trato fiel do mesmo. Quer fale de amores, de desgostos e tristezas, quer questione, choque ou escandalize, ao falar de coisas que po­dem observar-se no quotidiano, captura nas suas letras, nas me­lodias, nos arranjos, uma forma de ser e estar que pertence ao tem­po em que é criada.

Claro que a música, para sobreviver e poder ser relevan­te muitos anos após a sua concepção, tem de ter também uma ca­racterística intemporal. Tem de narrar um quotidiano de coisas que são, simultaneamente, relevantes para o seu tempo e relevan­tes para todos os tempos. Com certeza, para qualquer músico, sa­ber que uma canção sua ajudou alguém a tomar uma decisão que fez avançara sua vida, ou que reconfortou quem se sentia só é mo­tivo de uma enorme alegria.

Já por aqui escrevi e descrevi o que implica ser mú­sico profissional. Bem sei que não é assunto de interesse para todos, mas sentindo que existem ainda alguns equívocos em relação àquilo que implica a dedicação exclusiva à arte da música, achei queeraimportanteparamimtentarpassaraquemquisesseleral­gumasdascoisasquesãoinerentesànossaprofissão.Umadascoi­sas que considero mais importantes é a relação que criamos, pri­meiro, com o objecto artístico que produzimos, nomeadamente com as canções, e, segundo, com o público que as acolhe como fa­zendo parte da sua vida.

A música que fazemos, as histórias que contamos, são para usufruto de quem sinta que elas fazem sentido para si e saber que de facto a nossa arte importa alguma coisa na vida de alguém é motivo de profunda emoção. Por isso, é tão importante para nós que tenhamos o absoluto controlo da utilização das nossas can­ções. Se elas são criadas para usufruto universal, há que haver uma enorme ponderação quando nos são solicitadas utilizações que tornam o seu usufruto particular ou privado. Isto é assim quando nos referimos a publicidade, marcas ou causas. Por isso, quando algum interesse privado quiser utilizar uma canção como publicidade ao seu produto, terá de pedir autorização aos seus au­tores. Eis por que, quando ouvimos uma canção nossa a ser utili­zada de forma indevida ou com a qual não concordamos, o nosso sangueferve.Quandoessautilizaçãoéfeitaporquemtemrespon­sabilidade em fazer as coisas de forma ética e legal, pior ainda.

Daí que seja com muita consternação que vá ouvindo histó­rias acerca de campanhas que utilizam canções e modificam as suas letras e melodias sem que os seus autores tenham dado auto­rização para que tal acontecesse. Mais frustrante ainda é saber que as canções podem ser utilizadas em carros de campanha sem ter de pedir qualquer autorização aos seus autores e intérpretes, desde que não lhes alterem nada. Para mim, utilizar uma canção numa campanha de um partido ou movimento político é vinculá­-la a uma ideologia, a um programa de interesses. Por isso, repu­dio veementemente esta aparente benevolência da lei para com uma apropriação que, aos meus olhos, é indevida. Rogo a quem tem a incumbência de fazer leis e a quem defende legalmente os direitos dos autores e intérpretes que evolva às canções e aos seus criadores a dignidade que lhes estão a retirar quando as utilizam desta forma, sem a sua autorização. Não só pelos músicos ou pela música. Também por nós todos. Afinal, que tipo de democracia estamos a criar, quando, na base de uma campanha política, é uti­lizado o trabalho de outro cidadão sem que ele tenha direito de op­ção ou escolha?

[29-09-2013]

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA