Uma jornalista só pode ler a entrevista a Manuela Azevedo que publicamos esta edição de uma maneira: procurando sinais dos tempos. Avaliando como eram as coisas quando Manuela Azevedo, hoje com 102 anos, entrou para os jornais e como são hoje. Ela foi a primeira jornalista mulher em Portugal. E é uma sorte para nós que esteja viva para contar a história. Nenhuma mulher jornalista pode ler esta entrevista sem pensar a cada instante o que se alterou desde ela até nós, mulheres que dominam as redações portuguesas?
Muito mudou. A própria Manuela Azevedo foi o sintoma desta mudança: reformou-se quando passou a ser pouco prático escrever à mão e lhe pediram que o fizesse à máquina – dava muito trabalho aos tipógrafos. Mas não era, obviamente, a isso que me referia. Nós, mulheres, dominamos as redações. Dominamos? Sim, dominamos. Em número. Aqui onde escrevo esta crónica, no meu gabinete no edifício do Diário de Notícias, em Lisboa, chegam ecos sobretudo de vozes femininas – e assim é por todos os andares aqui em baixo, exceção feita ao jornal desportivo O Jogo, o único em que ainda há mais homens que mulheres.
[27-10-2013]
O 25 de Abril trouxe a revolução do que era exceção passar a ser a regra – haver, sequer haver, mulheres nas redações. Nos anos 1980, com o progresso a ganhar velocidade de cruzeiro em Portugal, com as televisões privadas a precisarem de caras agradáveis a dar notícias e as universidades a dominarem o ingresso na profissão, a avalanche feminina foi imparável. E o cenário mudou por completo. Quando eu entrei na profissão, em inícios dos anos 90, já era absolutamente normal uma mulher numa redação. Já não acontecia, como nos tempos da Manuela, os colegas terem de assinalar a sua presença, com uma bandeira branca colocada num candeeiro, para moderarem a linguagem.
Mas depois… há o resto. De que Manuela quase não fala, porque é uma apaixonada pela profissão que a tornou quem ainda é. Há o mundo que fica para lá das redações. O mundo. E esse é bastante menos animador. Basta dizer que Manuela teve de desistir de casar – estava noiva – quando decidiu ser jornalista. Ela só conseguiu bater-se de igual para igual com os homens da sua profissão sendo como eles, e não correspondendo ao papel que à mulher estava destivado na sua geração.
O problema é que a vida de Manuela Azevedo atravessou dois séculos mas nestes pequenos pormenores vemos como o mundo mudou pouco. Na vida de tantas mulheres jornalistas, nervosas e stressadas, a driblar as horas de fecho e a família que espera, em casa. As reuniões marcadas para a hora em que é preciso ir buscar os filhos à escola. Tantas promoções que as eliminam apenas com a perspetiva de poderem não vir a dar as incontáveis horas exigidas – e inutilmente exigidas – pelas redações. E a derradeira prova: as mulheres dominam as redações, mas só em número: Porque os cargos de chefia, nas redações e nas empresas jornalísticas, são sobretudo desempenhados por homens. Com as exceções que confirmam a regra.
Na entrevista, no entanto, Manuela Azevedo não dá muito valor a tudo isto. Ela foi, antes do tempo, o símbolo da igualdade. Nunca teve deferências e nunca as exigiu. E quando lhe ofereceram uma ‘Tribuna da Mulher’… recusou. «Era só que faltava, nem tribunas de homens nem de mulheres, ali havia jornalistas e quem tivesse unhas tocava guitarra. E eles lá cederam», diz ela. Mais de 50 anos depois, ainda me emociona que o tenha feito. Manuela Azevedo foi uma revolucionária. Precisamente por não querer ser a primeira mulher jornalista. Querer, simplesmente, ser jornalista