
A.
(escutando o piano de Júlio Resende em “Amália”. Disco que revisita fados clássicos)
1. Não conheço forma de cantar mais estranha do que esta: não há canto, mas algo lá atrás, à frente, por todos os lados, o anuncia. Vem aí. E, se vem aí, tu preparas-te. Mexes-te na cadeira, ajeitas a camisa, confirmas se o coração ainda está e, se está, se ainda fala, se ainda bate, se ainda quer fazer coisas.
2. Música forte é aquela que faz de ti um homem mudo.
O homem mudo não é apenas aquele que não fala, é também aquele que não tem qualquer som; o seu corpo inteiro cala–se. O homem é mudo até naquilo que está escondido e não pára de funcionar.
O que é uma música forte? Mesmo que alguém encoste o ouvido ao peito do «ouvidor» e faça um esforço para ouvir, nada ouvirá senão a música exterior. Estou a ouvir por inteiro: ou seja: estou sem corpo.
3. Um canto em que não há voz.
Num lado, no lado do emissor, ninguém canta. Mas do outro lado, estranhamente, no lado do receptor, ouve-se o canto.
Se ninguém canta e eu escuto o canto, algo acontece no meio, no percurso. Uma forma rara de nos tirarem algo.
Como se alguém te roubasse o céu debaixo dos pés e por isso protestasses e, de forma lógica, insistisses que o céu nunca está para esses lados (para baixo). Mas o céu está sempre no sítio certo, no local para onde nunca consegues apontar.
4. Uma energia inteira, em bicos de pés, na expectativa.
O que se espera é isto (como quem curva uma esquina): o conhecido – as notas que nos são familiares.
O que nos coloca em perigo é aquilo: o estranho – as notas que seríamos incapazes de prever ou calcular.
Isto, o familiar.
Aquilo, o estranho.
Entre isto e aquilo: o som do piano.
Mas se desistires de pensar verás que não há piano, apenas som. E nada mais violento e de recear que esse som que não vem de lado nenhum.
Se não consegues detectar a origem, jamais poderás controlar.
B.
1. A música (o fado, em particular) é a forma sonora de medir o potencial de desespero de um ser vivo.
Uma forma sonora de diagnosticar.
2. Tu és o objecto que a música diagnostica – desespero inteiro ou a metade ou a um quarto.
Claro que as medidas não são assim certas e exactas, mas sim: não te esqueças, de vez em quando, de medir o desespero no pulso exacto ou junto, afinal, a órgãos mais orgulhosos. Exame de diagnóstico.
3. Como se trava o comboio que avança para o sítio errado? Com um obstáculo.
Quando o desespero avança rápido de mais, eis o que deves fazer: colocar um obstáculo entre ti e ele (esse comboio perigoso que aí vem).
Mantém-te, portanto, assim como estás: com um desespero médio. Estar vivo é mais ou menos isso.
(para o Júlio Resende e para a Aldina)
GONÇALO M. TAVARES ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[06-10-2013]