A mentira de Armstrong

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Alex Gibney começou a filmar uma ode ao ciclista Lance Armstrong, mas, à medida que as acusações de doppin se iam confirmando, o realizador acabou por fazer um relato privilegiado de uma gigantesca fraude.

Se Oprah Winfrey não tives­se entrevistado Lance Ar­mstrong em janeiro e este não tivesse admitido que se dopou, talvez hoje o filme de Alex Gibney não se cha­masse A Mentira de Arms­trong. O título previsto era The Road Back [A Estrada de Regresso] e a ideia passava por filmar o percurso de um cam­peão e o seu regresso ao Tour de France. Mas, confrontado com a confissão, o móbil do do­cumentário que estava a ser filmado mudou. Gibney quis analisar uma das maiores men­tiras do desporto mundial e mostrar de que é feito um mentiroso, um homem que poderá ter danificado o ciclismo para sempre.

 

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Realizador Alex Gibney. Fotografia: Timothy Greefield Sanders

«Depois das provas contra ele, tive de fa­zer outra coisa», diz o realizador. «E o fil­me deixou de ser uma celebração.» Por ha­ver contratos assinados e muito dinheiro e tempo investido no projeto, o ciclista dopa­do não fugiu aos compromissos. Gibney, que teve acesso exclusivo ao homem, tenta per­ceber o que terá levado alguém a ser tão cas­murro como o ciclista, na constante encena­ção de uma mentira. «Claro que Lance tam­bém me iludiu. Eu gostava de estar com ele. Uma pessoa muito esperta, com um poder de persuasão fortíssimo.»

O homem que se tornou admirado pe­las conquistas nas várias edições da Vol­ta a França em Bicicleta e depois, no plano pessoal, por ter recuperado de um cancro testicular, tendo posteriormente voltado à competição para ser campeão e criar uma fundação de ajuda a doentes cancerígenos abre o coração perante as câmaras e fala da sua culpa.

Não terá sido apenas a fama e a necessi­dade de manter contratos de publicidade milionários que levaram Armstrong a ne­gar o uso de substâncias dopantes ao lon­go dos anos. Não, este homem acreditou na sua própria mentira. «Em 2009, quando de­cidi fazer o documentário sobre o seu come­back, claro que sabia das acusações e suspei­ções. Em todo o caso, este era um homem com uma aura de invencibilidade. Por muito que o acusassem, ele defendia-se sempre de forma dura. Na altura, ninguém poderia ter a certeza de que Lance era um batoteiro e a minha função como cineasta era apenas se­gui-lo durante um ano. Inicialmente, o pro­jeto tinha também depoimentos daqueles que o acusavam. O meu ponto de partida era a curiosidade, embora a dada altura os feitos desportivos do homem me tivessem deixado também uma forte impressão. E mostro isso no filme, estava a torcer por ele.»

Na verdade, o documentário é quase um ajuste de contas de um cineasta com um ex–ídolo. Lance Armstrong, que neste momen­to, luta contra processos de entidades des­portivas e patrocinadores, era um exemplo para jovens. Alguém que se transformou num campeão que mais parecia um super–homem e ainda por cima com um bom cora­ção. Venceu sete títulos do Tour de France, um cancro nos testículos, criou uma Funda­ção que ajudava crianças com cancro e ca­sou com uma estrela do rock, Sheryl Crow. Os seus livros funcionavam como manuais de autoajuda. Entre 1999 e 2005, o seu reina­do foi lendário. Nunca na história do ciclis­mo tinha havido uma supremacia tão forte. Hoje, sabe-se que Lance se dopava desde o primeiro tour. Porque nunca se tinha deixa­do apanhar? Antes de mais, graças à tecno­logia das análises, que não estava avançada e, logicamente, porque um batoteiro profis­sional tem grandes truques. Em A Mentira de Armstrong ele próprio confessa o método, embora ainda se queixe da forma como foi perseguido e vigiado com médicos e análises.

«Quando o Lance quis voltar ao Tour de­pois de tudo, não lhe interessava nada que não fosse a vitória. De forma suja ou limpa, ele queria mesmo ganhar e provar a todos que era o maior.» E com um grande ego. Por isso, em 2009, deu acesso total a Alex Gibney para o seguir. Queria que um cineasta de prestígio lhe desse cobertura ou talvez aquele efeito de redenção. Claro que o ex-ciclista não gos­tou do título final do filme, mas acabou por compreender. «Lembro-me de ele reconhe­cer que tinha mentido e que, obviamente, es­se título fazia sentido… Quando o confrontei depois da entrevista a Oprah, na qual eu também filmei os bastidores, a sua motivação foi justificar-se por intermédio da comparação. Atirou-se aos males do ciclismo profissional. Claro que o Lance não é a única coisa erra­da neste desporto.» Depois de Armstrong, outros ciclistas de peso já caíram nas malhas de doping, sendo o nome do campeão espa­nhol Alberto Contador o mais sonante.

Além da denúncia de uma mentira gigan­te encenada pela máquina de Armstrong, o filme mostra outro pecado de Lance: a for­ma implacável como perseguiu todos os que o acusaram, em especial ex-colegas. Por isso, A Mentira de Armstrong inclui muitos relatos de gente com ódio. «Um dos maiores erros de Lance foi abusar do seu poder imenso. Não tinha necessidade de fazer toda aquela per­seguição a quem o acusava de mentir. A men­tira foi tão gigantesca que envolveu muitas pessoas. Quando recuperou do cancro e da­va conferências sobre a sua recuperação far­tava-se de frisar que nunca era capaz de usar substâncias ilegais pois, afinal de contas, era um sobrevivente de cancro…E aí a mentira ganha uma carga ainda mais negra…»

Gibney, uma espécie de caça-mentirosos que em 2005 filmou Enron The Smartest Guys in the Room (inédito em Portugal), sobre os executivos de uma empresa de ener­gia norte-americana que cometeram uma fraude de milhões de dólares, deixa apenas uma certeza quanto ao ciclista que caiu em desgraça: «Quando esse filme de ficção que Hollywood está a fazer sobre a vida de Lan­ce estrear, vamos todos perceber que há um problema: ninguém pode fazer de Lance Armstrong. Ele é um grande ator.

 

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