O pintor de Aveiro que só pinta chapéus de dois bicos

Texto Sara Dias Oliveira | Fotografia Gonçalo Villaverde/Global Imagens

Na terceira classe, fazia bonecos sem parar nos cadernos da primária e não tinha boa nota a desenho. «Não gostava de fazer os desenhos que me obrigavam a fazer», recorda. Jarras com flores? Nem pensar. No liceu, enchia páginas de banda desenhada e as notas a desenho continuavam a não ser grande coisa. Aos 24 anos, estudou pintura, depois de uma passagem por uma repartição de finanças, onde atendia pessoas e vendia valores selados, e terminou o curso como um dos melhores alunos da Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa.

Fez arte gráfica, banda desenhada e desenho humorístico. E continua a pintar. Victor Milheirão, 81 anos, vive em Lisboa e voltou a Ovar, terra onde nasceu, com uma exposição cheia de bicórnios. É uma obsessão, não doentia, mas persistente, que se colou à pele. Não há quadro sem bicórnio. É o ponto de partida, o elemento que tudo une.

Victor diz que «as minhas pinturas nunca transmitem momentos de angústia, não sou uma pessoa angustiada, não permito grandes depressões morais, não sou depressivo. Há uma certa alegria de viver, uma certa bonomia. Não sou um pintor pesado».

«Quando começo a desenhar os bicórnios, o resto vem a seguir.» Porquê? «Há razões que a própria razão desconhece. O bicórnio marca uma presença muito pessoal nos meus quadros. Deu-me para fazer bicórnios e agora o bicórnio não me sai das entranhas», responde. Há outras explicações. Logo a seguir ao 25 de abril, falava-se nos caceteiros, a gente que queria fazer política à custa de cacetadas. Victor Milheirão recuou então ao tempo dos caceteiros de D. Miguel e dos chapéus de dois bicos que marcaram a época das luzes.

«Os homens levantaram as abas dos chapéus e assim nasceram os bicórnios – o Napoleão usava um. O bicórnio faz que o nosso horizonte seja mais abrangente, sem aquele peso das abas caídas. É um chapéu mais arejado», diz. Pinta com spray, tinta-da-china, aguarela, pastel, acrílicos. Adora Picasso e há uma outra pincelada que mostra esse gosto. Nos títulos, a influência das leituras, da semântica de Aquilino Ribeiro, de Camilo Castelo Branco. «Gosto muito das expressões que utilizam, gosto de recuperar essas ruínas da fala», revela.

Fazem-se Gaiolas por Encomenda, Em Espírito Chega-se Lá, Histórias Que Não Foram Contadas, A Estratégia da Raposa, Passarolando, e Pacto Ibérico, o quadro com um porco de madeira que é uma tábua para pousar os tachos, são alguns dos batismos que escolheu para os seus quadros. «As minhas pinturas nunca transmitem momentos de angústia, não sou uma pessoa angustiada, não permito grandes depressões morais, não sou depressivo. Há uma certa alegria de viver, uma certa bonomia. Não sou um pintor pesado». E isso nota-se. Não hesita em evidenciar a sua costela humorística e a interpretação fica à consideração. «Não quero dizer quem sou, quero que me descubram. Não sou isto nem aquilo, quero que as pessoas façam leituras.»

Tem quilómetros de exposições nas pernas. Viu Gauguin em Tóquio, retrospetivas de Stanley Spencer em Inglaterra, e de Picasso e Matisse em Paris, e muitas exposições em museus do Brasil, Itália, Espanha. Por esse mundo fora.

Entrou no museu da Gulbenkian como técnico de restauro, chegou a responsável pelo departamento de restauro de documentos gráficos, saiu ao fim de 34 anos. Sem nunca deixar de pintar, de desenhar, de ver exposições. Criou os laparotos, banda desenhada com coelhinhos que faziam peripécias, para a revista Fungagá da Bicharada, dirigida por Júlio Isidro.

«Teve um certo êxito, na altura, depois a revista acabou e nunca mais fiz.» Publicou cartoons na Parada da Paródia, no Diário de Lisboa. Na década de 1990, ganhou um prémio de humor livre no Salão Nacional de Caricaturas de Oeiras com um desenho em que colocou Van Gogh a pintar a cama do famoso quarto onde vivia.

Chegou a ter nas mãos um livro avaliado num milhão de dólares para restaurar. E fez muita coisa nos tempos da Gulbenkian.

Deu aulas de desenho e pintura na Escola e Artes Decorativas António Arroio durante dois anos. Não era por aí. No ano em que terminou o curso de Pintura, em 1967, Lisboa foi fustigada com grandes inundações. O Palácio de Pombal, em Oeiras, onde a Gulbenkian tinha provisoriamente o seu museu, sofreu bastante. A água entrou pelos postigos e estragou muitas peças.

Estavam à procura de pessoal, Victor Milheirão concorreu e entrou na equipa responsável por recuperar peças gráficas: estampas japonesas e europeias, livros islâmicos, livros ocidentais em pergaminho, gravuras nipónicas. Chegou a responsável pelo departamento de restauro de documentos gráficos do museu da Gulbenkian, geriu uma equipa de 12 pessoas. Em 1980, inscreveu-se no curso de conservador de museus no Museu Nacional de Arte Antiga.

Chegou a ter nas mãos um livro avaliado num milhão de dólares para restaurar. E fez muita coisa nos tempos da Gulbenkian. Ajudou a montar vários núcleos na 17.ª Exposição Europeia no Palácio da Ajuda. Pendurou grandes quadros de uma exposição de Almada Negreiros no Centro Cultural de Belém. Desenhou um projeto para uma oficina de restauro aquando da transferência de peças do duque de Wellington da British Library para a Universidade de Southampton.

Deu um curso de restauro no Museu do Ipiranga em São Paulo durante um mês. Esteve no Japão e no Canadá a levar e trazer peças de pintura de museus. Escreveu sobre a técnica de desenho de Amadeo Sousa Cardoso que não chegou a ser publicado pela Gulbenkian. Ao fim de 34 anos, saiu. Foi o último a sair da oficina de restauro de documentos gráficos. Foi ele que fechou a porta.

Os tempos do restauro de pergaminhos iluminados, encadernações, livros medievais, não lhe saem das pontas dos dedos. Continua na arte, tem um ateliê de restauro de tudo o que seja papel ou pergaminhos – desenhos, gravuras, leques, biombos – com duas colegas no jardim das Amoreiras, em Lisboa. Em casa, continua a pintar os seus quadros num estirador e rodeado de uma biblioteca com cerca de cinco mil livros, muita banda desenhada – que deixou de fazer porque dá-lhe cabo dos olhos –, centenas de livros de cartoons, muitos de arte.

Ovar, onde tem agora as suas obras expostas, é a terra que viu Victor Milheirão nascer, na casa do avô materno, mesmo no centro da cidade, na Praça da República, frente à Câmara Municipal. O avô, Alves Cerqueira, era figura de proa. Foi o primeiro comandante dos bombeiros de Ovar, tendo sido, aliás, em sua casa que foi feita a primeira reunião para a constituição da corporação.

Era comerciante, tinha uma loja de fazendas, e foi ele que fundou uma grande tradição de Ovar, o cantar dos Reis. Gostava de tocar viola, compunha umas canções para as festas. «Ovar tem uma rua com o seu nome, era uma pessoa muito estimada.» Aos 3 anos, Victor Milheirão deixou Ovar e foi viver para Lisboa com os pais, mas nas férias regressava a casa do avô. Em criança, dizia aos pais que queria ser músico. Ainda aprendeu a tocar piano, mas foi a pintura que lhe agarrou o coração. Até hoje.

UMA VIDA DEDICADA ÀS ARTES GRÁFICAS E PLÁSTICAS

É óbvia na pintura de Victor Milheirão a influência dos grandes pintores espanhóis do início do século XX. Assume-se grande admirador de Picasso e tem milhares de quilómetros de exposições, que visitou ou ajudou a montar, em todo o mundo. Uma vida dedicada às artes gráficas e plásticas.

BICÓRNIOS EM OVAR

«Bicórnios em Parada» foi o nome da terceira exposição de Victor Milheirão em Ovar, terra natal. Vários quadros do pintor estiveram recentemente expostos no Museu Júlio Dinis. Em 1983, expôs desenhos e aguarelas na Cooperativa Cultural Sem Margem em Ovar e 17 anos depois, em 2000, regressou à cidade para mais uma exposição, desta vez na biblioteca municipal, altura em que lança o livro Bicórnios. Está representado com desenhos humorísticos num espaço dedicado a cartoons em Basileia, Suíça.