Um chão para rinocerontes

Notícias Magazine

Espalhei-me, ontem. Ia a descer a rua íngreme que liga o supermercado do bairro à minha casa quando o pé me fugiu e caí para trás. Parti uma caixa de ovos mas nenhum osso, o que bem vistas as coisas até nem é mau saldo – as únicas perdas que resultaram da minha queda foram 74 cêntimos e um valente pedaço de dignidade. Quando me levantei, olhei para trás para verificar se alguém tinha assistido àquele triste espetáculo. Havia pessoas na rua, sim, mas nenhuma parecia ter assistido ao meu falhanço acrobático.

E a explicação tem qualquer coisa de revelador. É que, como estava a chover, os meus vizinhos optaram todos por ignorar o passeio e descer a rua pelo meio da estrada. Ao invés de tomarem o caminho reservado aos peões, optaram naturalmente pelo alcatrão, menos propício a humilhações. Atrás dos carros estacionados nas bermas da calçada, a minha vergonha tinha permanecido escondida.

No final de janeiro, o INE divulgou um relatório sobre as causas de morte no país e havia uma que crescia mais do que todas. Em 2015, morreram 736 pessoas por queda, mais 19 por cento do que no ano anterior – e quase tantas como em acidentes de viação. E, se é verdade que o número inclui quedas domésticas, também não deixa de ser relevante que se refira apenas a óbitos, não contabilizando pessoas que perdem seriamente mobilidade, partem ancas e fémures, ficam acamadas ou incapacitadas de trabalhar. Mas, ao contrário da mortalidade rodoviária, as quedas não são alvo de qualquer campanha de prevenção. É um daqueles problemas invisíveis à vista de toda a gente.

Os últimos dias foram de chuva no país e isso significa que muita gente se estatelou no chão, como eu me estatelei ontem. Em dezembro do ano passado, a Câmara Municipal de Lisboa aprovou a intenção de candidatar a calçada portuguesa a património imaterial da humanidade. É, afinal, um património genuinamente português, que se espalhou pelo território lusófono, que tem expressões artísticas fabulosas espalhadas pelo país e pelo mundo. Mas depois há isto: é uma ocupação perigosa do espaço público. As pedras de calcário são pobres em atrito, não seguram pés a quem caminha. Muito menos em dias de chuva. E ainda menos em ruas íngremes – e se pensarmos bem vemos que as principais cidades do país são tudo menos planas.

A arte pública não pode ser desprovida de utilidade. É pública – então tem de servir os cidadãos. Soluções com pavimentos mistos (uma zona em calçada, outra num piso com maior atrito) só funcionam em áreas pedonais largas. Mas, nas estreitas vielas de Lisboa, Porto ou Coimbra, naquelas ruas inclinadas onde o passeio é dimensionado para uma cana de pesca, é essencial arrancar a calçada e substituí-la por um chão que agarre os pés. É, muitas vezes, uma questão de vida ou morte.

A calçada foi introduzida em Portugal no reinado de D. Manuel I, em finais do século XV. No dia do aniversário do monarca, saía à rua um grande cortejo, liderado por um rinoceronte branco chamado Ganga. Ora, acontecendo a celebração em janeiro, época de chuvas, e sendo o chão de terra batida, ordenou o rei que se calcetassem os pavimentos, para que a corte não se sujasse na lama que o animal criava com os seus pesados passos. O chão fez-se para nos salvar da humilhação. Foi esse o seu propósito desde o início.

(Ricardo J. Rodrigues é jornalista.)