Tradutor: a profissão impossível

São um nome impresso, em letras pequeninas, algures numa das discretas páginas iniciais dos livros. Não são autores da obra mas são deles todas as palavras que ali se encontram escritas. Os tradutores descrevem‑nos personagens que não criaram, enredos que não idealizaram e ideias que não são as suas. E dão à literatura a possibilidade de ser verdadeiramente universal.

A história rezava mais ou menos assim: «Apesar da inclemência do tempo, ele ia sentado à proa do bote, rumo ao interior do continente. Assustado, arrependia‑se amargamente de não ter inventado uma desculpa para não ir. Podia ter pretendido que tinha coisas combinadas na cidade…» Foi nesta altura que passei de submersa na ação da obra premiada com o Man Booker Prize para uma desagradável noção de realidade que me fez recuar cerca de 230 páginas até chegar àquela que é provavelmente a mais ignorada de todas – a ficha técnica.

Ali estava o nome, desconhecido, de quem escreveu «pretendido», em vez de «fingido», uma opção que comprometeria a minha fé nas seiscentas páginas ainda por ler mas que ao mesmo tempo provocou uma epifania: quantas centenas já de romances lidos, não através das palavras do autor, mas sim através das palavras reescritas com a admirável e engenhosa invisibilidade do tradutor?

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A história não surpreende o tradutor João Reis. «Se a tradução está bem, os louros vão para o autor, se alguma coisa está mal, a culpa é do tradutor. E às vezes é mesmo, porque há más traduções no mercado, mas nem sempre, até porque muitas vezes a última versão do livro não é a nossa.» João nunca planeou ser tradutor. Começou por três anos de Medicina Veterinária, licenciou‑se em Filosofia e, pelo meio, começou a aprender sueco num curso livre, por puro gosto pela língua. Gostou tanto que passou para o norueguês, para o dinamarquês e, por último, para o islandês, que teve de aprender em aulas privadas, via Skype, uma vez que, em Portugal, não havia um único professor nativo.

Nunca pensou ser tradutor, mas quando fundou a editora Eucleia, em 2010, os fundos eram poucos e, uma vez que já dominava tantas línguas, depois de ler sobre técnicas de tradução e fazer algumas experiências de forma autodidata, acabou a traduzir muitos dos livros da chancela que criou. Quando os títulos traduzidos começaram a sair não tardaram a chegar contactos de outros editores a propor‑lhe trabalho. Hoje, depois de ter vivido na Suécia, na Noruega e em Inglaterra, foi‑se a editora, vendida, mas ficou a tradução – o ofício que, como lembra, o leitor só nota quando está mal feito.

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Talvez não todos os leitores, é certo. António Pescada, 78 anos, tradutor há mais de 40, nasceu numa casa sem livros. O gosto pela leitura ganhou‑o perto dos 20 anos, em Lisboa, nas Bibliotecas da Gulbenkian. Começou tarde mas, ao contrário do leitor comum, por mais invisível que fosse o tradutor, a sua presença nunca lhe passava despercebida. Lia as obras em português e pensava se estariam bem traduzidas. Depois, com o conhecimento de línguas que já tinha, espreitava os originais em francês e inglês e comparava. E ficava a pensar sobre algumas passagens: porque teria o tradutor feito assim e não assado? Interessou‑se pelo russo através dos romances que lia e quis aprender a língua, mas à época tudo o que cheirasse a soviético era suspeito – corria a década de 1950 e era o esplendor da ditadura. Teria de esperar 20 anos até ter aulas formais da língua.

«Lembro‑me, ainda nos anos 1960, de comprar uns manuais de russo de uma coleção chamada Assimil. Depois do 25 de Abril abriu a associação Portugal‑URSS que tinha aulas de russo e inscrevi‑me. » Meses depois surgiu uma proposta de trabalho numa editora Moscovo, onde esteve cinco anos. «A melhor maneira de aprender uma língua é sempre no lugar onde ela se fala.»

Muito estudo e muito tempo depois cumpriu o sonho de miúdo: ler Tolstoi no original. Nunca leu, nem quer ler, o Guerra e Paz noutra língua e confessa que, quando gosta do autor, acaba por se distrair e entregar ao prazer da leitura. «A traduzir A Bela do Senhor, do Albert Cohen, punha‑me a ler e esquecia‑me de traduzir, tinha de voltar atrás quando me lembrava que era trabalho.» Pega no livro, cheio de marcações coloridas. «Estive a reler e são algumas coisas que quero alterar se houver uma reedição, coisas pequeninas, algumas gralhas.»

A tradução desta história de amor sofrida, que lhe valeu o Grande Prémio de Tradução do PEN Clube Português, em 1995, foi um dos seus maiores desafios. «Tem passagens de grande crueldade, outras de grande ternura e um capítulo de 18 páginas, sem uma única vírgula, onde tudo faz sentido. Os grandes escritores têm esse dom.» E o tradutor, também tem de o ter? «Um bocadinho, sim. Tem de saber o que vai na cabeça do escritor, tem de sentir. O tradutor deve servir o autor.»

O tradutor deve servir o autor e o leitor. E, ao serviço do leitor, tem uma tarefa inglória cujo supremo objetivo é não ser notado. Mas alcançar a invisibilidade é um trabalho árduo, um processo que requer técnica e criatividade. «É um trabalho poético, porque há um elemento de recriação muito forte. Mas também é reflexivo porque está lá outra coisa – o original – que nós temos de restituir. Como? Nem sempre é óbvio. As regras, em tradução, são fundamentalmente negativas, passam por aquilo que não deve fazer‑se.

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Mas não há uma fórmula para fazer bem», sublinha o poeta, ensaísta e tradutor Miguel Serras Pereira, que traduz do francês, do espanhol, do inglês e do italiano. Longe vão os tempos das primeiras traduções do jornal Le Monde para o Diário de Lisboa e daquele que acredita, sem certeza, ter sido o primeiro livro que traduziu, A Vida Quotidiana dos Primeiros Cristãos. Entretanto, pelas suas mãos já passaram tantos nomes da literatura e da filosofia que qualquer enumeração pecaria por incompleta.

Mesmo sem nenhuma fórmula disponível, o tal equilíbrio entre reflexão e recriação valeu‑lhe, por duas vezes, o Grande Prémio de Tradução do PEN Clube Português, primeiro em 1990, com a tradução de Os Meteoros, de Michel Tournier (Dom Quixote) e, em 2006, pela tradução daquele que é considerado o primeiro romance moderno, Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes (Dom Quixote).

«Traduz-se com ouvido para a música do texto», resume Ana Maria Chaves, tradutora de inglês há mais de 40 anos. Aos 70, com cerca de duzentas obras traduzidas em seu nome e perto de cem em regime de tradução colaborativa e em parceria, a ex‑docente da Universidade do Minho e do ISLA de Vila Nova de Gaia defende que traduzir é um talento, como pintar ou cantar. «A teoria e o conhecimento das línguas ensinam‑se e são importantes, mas não chegam. Há que saber ouvir os ritmos, as sonoridades, o comprimento de frase, o estilo do autor.»

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É na leitura dessa partitura que encontra o prazer da tradução. Admite que está longe de ser uma leitora compulsiva e não se interessa por crítica literária mais do que o suficiente para perceber o contexto do autor. «Tenho de saber inserir o autor na sua época, claro. Antes de traduzir a poesia das irmãs Brontë, fui perceber quem eram, como viviam, porque escreviam de uma forma tão triste. O contexto é importante, mas há que evitar deixarmo‑nos influenciar por ele porque há um grande risco quando se traduz: ler mais do que está lá.»

O que a apaixona na tradução é o jogo das palavras, fazer um puzzle cujo lugar das peças é determinado por uma certa visão do mundo. «Cada cultura usa lentes diferentes e isso reflete‑se na língua. Por exemplo, os ingleses dizem “I dont think this will happen” e nós dizemos “Eu acho que isto não vai acontecer”, ou seja, fazemos as negativas em pontos diferentes da frase. Parece pouco importante, mas pode significar uma má tradução. Se não for considerado, acabamos a ler palavras portuguesas com a estrutura inglesa.»

Hoje, depois de traduzir onze livros de William Faulkner, o autor já não lhe oferece grandes dificuldades, mas recorda bem que o primeiro livro foi um choque. Tinha começado na profissão há pouco tempo quando lhe propuseram a tradução de Rio Velho para ser publicado em capítulos alternados com a tradução de Jorge de Sena de Palmeiras Velhas. Quando começou a ler a novela – sobre os condenados a trabalhos forçados e a sua jornada através das cheias no Mississípi – houve alturas em que chorou.

«Faulkner usa sete adjetivos para qualificar um substantivo, tem frases de uma página e meia com trinta orações intercalares. Isso é uma marca de estilo tão forte que não é legítimo cortar o texto numa série de frases. Reescrever mantendo aquele estilo exige muito.»

Se, por vezes, a dificuldade pode ser causada pela genialidade do autor, outras tantas é pelo seu oposto. A tradutora assegura que, em prosa, não são as grandes obras que lhe têm oferecido as grandes dificuldades, mas antes a chamada literatura light. «Obrigam muitas vezes a um trabalho de correção de erros e implicam a resolução de problemas complicados porque estão cheias de piadas e trocadilhos, quase sempre intraduzíveis, que exigem adaptação para português.»

 

ADAPTAR OU NÃO ADAPTAR, EIS A QUESTÃO.

Também aí o equilíbrio é ténue, feito das necessidades da obra e da sensibilidade do tradutor. Alguns consideram as famosas notas do tradutor um atestado de incompetência que passam a si mesmos, outros garantem que é um recurso necessário para não despojar o leitor do contexto. «A adaptação pode ser necessária, por exemplo, se há rima. De contrário, se o leitor está a ler um romance russo deve perceber que o romance é russo. Adaptar demasiado é roubar o contexto ao leitor», defende António Pescada. Por isso, sempre que aparecem palavras intraduzíveis como samovar, balalaica ou troika (que são três cavalos ou um carro puxado por três cavalos), recusa‑se a adaptações e opta por uma breve nota explicativa. «Não podemos expurgar as obras do seu ambiente, cor e sabor local.»

Em algumas situações, se o tradutor tem dúvidas há outra solução: perguntar ao autor. «Não é a regra, mas pode acontecer. Quando traduzi o Danúbio, do Magris, escrevi‑lhe a perguntar algumas coisas. E também há autores que escrevem a por‑se ao dispor», conta Miguel Serras Pereira. Há até alguns bastante participativos, como Milan Kundera, que frequentemente apresenta pedidos de esclarecimento sobre as opções de tradução. «Lembro‑me de que no livro A Ignorância ele falava muito sobre a “nostalgie”. Traduzi por “nostalgia” e ele escreveu‑me a perguntar porque é que não tinha usado a palavra “saudade”.

Lá expliquei que não se adequava e porquê. Aceita muito bem todas as explicações, mas vê tudo de forma muito escrupulosa.» As mãos de Miguel Serras Pereira esquecem‑se do cachimbo e o rosto abre‑se num meio sorriso quando resume assim o ofício que tem há 40 anos: «É uma profissão impossível – digo‑o muitas vezes. Cada língua tem uma relação única de som e de sentido das palavras. É impossível escrever o mesmo noutra língua.» Essa é também uma das ideias exploradas por Umberto Eco no seu livro Dizer Quase a Mesma Coisa – Sobre a Tradução. Apesar de ter alcançado a fama com títulos como O Nome da Rosa e Baudolino, Eco era semiólogo, linguista e tradutor, além de autor.

Isso dava‑lhe uma perspetiva única da tradução. Defendia que era uma negociação, um processo no qual se renuncia a alguma coisa para obter noutra. E que, no processo, aquilo que se obtém é quase, mas nunca verdadeiramente a mesma coisa. Traduzir pode ser impossível, mas é necessário. Os autores sabem-no, melhor do que ninguém.

José Saramago escreveu que são os tradutores quem faz a literatura universal, Púshkin afirmou‑os os carteiros da civilização humana, George Steiner garantiu que, sem tradução, viveríamos nas províncias que fazem fronteira com o silêncio.

O PROBLEMA DA FALTA de reconhecimento da profissão não começa no leitor. As editoras que colocam o nome do tradutor na capa são a exceção, mas a clara identificação do tradutor, defendida por todos os que se dedicam ao ofício, não se prende apenas com as razões mais óbvias, de reconhecimento. «É também uma responsabilização», diz António Pescada. E, claro, a sua ausência espelha a desvalorização do trabalho e a perda de direitos sobre a tradução. António Pescada garante que teve fases em que traduzia 10 horas por dia para conseguir um rendimento confortável; João Reis recorre à tradução técnica, bastante mais bem paga, para equilibrar o orçamento e lembra que Portugal é dos poucos países europeus onde o tradutor não recebe percentagem sobre as vendas ou reedições; Miguel Serras Pereira diz que, em 2010, quase todas as editoras baixaram os preços para valores impossíveis.

Apesar de o Código dos Direitos de Autor considerar a tradução uma obra equiparada a original e dizer que, «salvo convenção em contrário, o contrato celebrado entre editor e tradutor não implica cedência nem transmissão, temporária ou permanente, a favor daquele, dos direitos deste sobre a sua tradução», o facto é que deixa margem para a convenção em contrário. «Em Portugal, o tradutor perde sempre os direitos sobre o que traduz. Os contratos estipulam que todos os direitos são do editor, que pode vender, revender ou reeditar sem nos dizer nada. Até pode alterar o nosso trabalho.» João Reis frisa que os editores não são todos iguais, mas conta que já viu títulos de traduções suas serem mudados, sem uma palavra, e só o descobriu com o livro já impresso. «Quem seja excessivamente orgulhoso, como tradutor, está na profissão errada.»