Todos os sonsos do mundo

Notícias Magazine

Não é uso comum, mas peço já desculpa. Apesar da aparência lírica, esta crónica vai chafurdar na bosta e pronunciar algumas palavras feias. Inclui também uma dose generosa de poesia. A mistura de versos com a atividade bancária parecerá um pouco ordinária, mas a culpa não é minha. Devo o desarranjo a uma responsável espanhola do Bankinter que há pouco tempo disse que um banqueiro é alguém que «financia os sonhos das pessoas».

Não decerto por mera coincidência, os cartões de débito e crédito da igualmente sentimental Caixa Geral de Depósitos são decorados com rabiscos que procuram representar Fernando Pessoa. Alguns exemplares incluem o verso «Tenho em mim todos os sonhos do mundo» (ou, na modalidade de crédito, «Tudo vale a pena se a alma não é pequena»).

Como não pode defender-se das pulhices, o poeta padeceu ainda do enxovalho de ser citado na defesa de Ricardo Salgado. Não ocorreu ao sonso banqueiro, porém, o Poema em Linha Recta, de Álvaro de Campos («Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar»), preferindo o mais cagarola «Pedir desculpa é pior do que não ter razão».

Como ainda sou do tempo em que o BES também prometia realizar sonhos (e não apenas os da família Salgado, do Cristiano Ronaldo e da Dona Inércia), suspeito de que tanto arroubo poético, tanta filantropia, procuram esconder o essencial da atividade criada pelos agiotas. A saber: fazem o favor de guardar o nosso dinheiro, que emprestam a terceiros cobrando juros, taxas, spreads e o mais de que forem capazes de se lembrar. Parece um negócio fácil e lucrativo, mas, ainda assim, várias instituições bancárias idóneas e insuspeitas conseguiram fazer evaporar milhares de milhões de euros.

O fenómeno teria o seu quê de mistério e evanescência se o dinheiro não tivesse, afinal, sido transferido para paraísos offshore, passando pelo bolso de uma manada de consultores, administradores, conselheiros, jornalistas, manobradores de influências, comentadores e comissionistas. Um cita a Nau Catrineta, do Garrett. Aquele faz como o poeta e finge que não se lembra. Este engana com a novilíngua das imparidades. O outro assume o fardo da «responsabilidade política» sem consequências. Aqueloutra diz que assinou de cruz (e, mesmo assim, não baixa a crista). E o contribuinte paga a conta (13 mil milhões!) enquanto espera pela novela da noite.