Ser mãe é uma prisão da qual não quero fugir nunca

Notícias Magazine

A ideia não é minha, é de alguém que entrevistei há muitos anos. Homem. Pai de muitos filhos. Religioso. Dizia ele que os filhos eram uma prisão doce. Na altura, achei a ideia bonita, mas estranhei-a como estranhei aquele homem tão crente em deus. No entanto, lembrei-me disso hoje quando comecei a escrever esta crónica e a apaguei e voltei a escrevê-la e a apaguei e voltei a escrevê-la. Uma coisa tramada esta, escrever sobre ser mãe. Sobre este amor que não se explica. Um amor que me faz tantas vezes, muitas mais do que gostaria de admitir, rezar a um deus no qual não acredito. Para que assuma o meu lugar quando não estou por perto e proteja os meus filhos.

Sempre quis ser mãe, apesar do carrinho de bebé e dos bonecos chorões a minha infância toda a um canto, sem ninguém que brincasse com eles. Falhou a tentativa da minha mãe de me treinar desde pequena a desempenhar esse papel. Eu preferia as ruas de Paço de Arcos e as casas na árvore que construía com o meu irmão e os nossos amigos, todos rapazes, nas ladeiras que desciam da linha do comboio.

Sempre quis ser mãe, sem saber muito bem o que significava. E não percebia a minha. Cresci por oposição a ela, a tentar sair-lhe de debaixo da asa, a resistir-lhe ao controlo, a querer cortar o cordão umbilical, a reagir aos seus medos e ansiedades. Sem perceber que foi ela a minha melhor treinadora, que foi com ela – e com o meu pai, que quando ler isto vai ficar cheio de ciúmes – que aprendi o amor incondicional. Com ela, a quem um dia, uma mulher, no supermercado, disse que eu e o meu irmão éramos bichos por não sermos batizados e por isso foi parar dentro da arca dos congelados. O que na altura me terá feito corar de vergonha, hoje enche-me de orgulho.

Foi preciso ser mãe para lhe perdoar, como quem agradece e finalmente é capaz de retribuir, tanto amor. Foi preciso nascer o João e depois a Rita e eu deixar de ser só Catarina e passar a ser mãe do João e da Rita para a perceber. E me perceber igual a ela. Talvez não completamente igual, vá. Capaz do mesmo amor, refém dos mesmos medos, mas também capaz de os vencer e dar aos miúdos a liberdade de crescerem. Não é fácil. Crescem depressa. Um espanto diário. Ainda ontem os dois no meu colo e hoje já grandes de mais para lá caberem. Os dois já não uma extensão de mim ou do pai, mas gente em construção, com ideias, opiniões, sonhos, personalidades. E, no entanto, o colo sempre lá. «Adoro-te, mãe», diz a Rita para fora. «Adoro-te, mãe», diz o João para dentro. E nesse momento justificadas todas as noites sem dormir, todas as reportagens por fazer, todos os filmes por ver, todas as viagens adiadas, todos os livros por ler e por escrever.

Há dias, a propósito da notícia de que cientistas norte-americanos tinham testado com sucesso um útero artificial, com fetos de cordeiro (transplantados para o dispositivo com 105 a 115 dias – o equivalente a 23 semanas de gestação humana –, desenvolveram-se como se no ventre materno), um artigo do The Guardian questionava «Como irão os úteros artificiais revolucionar as nossas ideias de género, família e igualdade?».

Muito à frente dos cientistas que estão a desenvolvê-los como evolução da incubadora, o jornal equacionava um futuro em que úteros artificiais substituirão «barrigas de aluguer», tornarão a parentalidade universalmente acessível e libertarão a mulher, não só dos perigos da gravidez como da «chatice» de a suportar durante nove meses.

Não é ficção científica e vale a pena pensar sobre isto. Eu ainda não consigo. Percebo as virtualidades, mas levanta-me dúvidas. De uma coisa, porém, estou certa: um útero artificial não significaria uma libertação da mulher. Quando alguém escolhe ser mãe – ou pai –, se quiser fazê-lo bem, está a entrar voluntariamente para uma prisão. Uma prisão doce, da qual não queremos sair nunca, mas uma prisão. E nada melhor do que uma gravidez, quando possível, para nos preparar para ela.