A portuguesa que manda na Lego

Texto de Sara Dias Oliveira | Foto de André Gouveia/Global Imagens

Rosário Costa tira da mala seis peças Lego vermelhas. Pergunta quantas combinações podemos fazer com aqueles pedacitos de plástico. Centenas? Milhares? São 935 milhões de possibilidades. Muito por onde inventar. Ao pescoço tem um colar com um coração roxo feito de legos e na mão direita uma pulseira oferecida por uma fã com peças retangulares. Acaba de chegar a São João da Madeira, onde nasceu, convidada para uma exposição com cinco milhões de peças Lego na Oliva Creative Factory. Estacionamento lotado, vaivém de pessoas, fila na bilheteira, fãs que querem conhecer a portuguesa que ocupa um lugar de destaque na famosa empresa.

Depois da abertura oficial, a diretora de design da Lego dará uma conferência restrita a fãs da marca para falar do seu percurso, explicar o processo de desenvolvimento de design da empresa, responder a dúvidas. Dois dias depois estará novamente num avião a caminho da Dinamarca. Com o portefólio de 2019 nas mãos e uma equipa para gerir, Rosário não pode ausentar-se muito tempo da empresa e está proibida de divulgar as novidades de 2018, muito menos as de 2019. A surpresa também é a alma deste negócio. Mas o convite para uma exposição de peças Lego na sua terra natal foi irresistível. De Portugal, é da família, do sol e das montanhas que sente mais saudades.

Rosário está na Lego há precisamente vinte anos – acabadinhos de fazer. No início de maio de 1997, no dia em que fazia 27 anos, entrou pela primeira vez na empresa como funcionária. Não avisou que fazia anos, mas a ficha não escapou aos recursos humanos, a surpresa aconteceu. Tinha um bolo e bandeiras da Dinamarca espalhadas na secretária. «Foi assim o começo, um dia fantástico.» Hoje, com 4500 funcionários em Billund, a duas horas e meia de Copenhaga, e 19 mil espalhados pelo mundo (27 dos quais são portugueses, a trabalhar em vários departamentos), quem faz anos continua a levar o bolo.

Rosário tem mais experiência e mais responsabilidades. Coordena os projetos Lego Friends, Lego Disney, Lego Evels, Lego DC Super Heroes Girls. É a única portuguesa a liderar a área de design na Lego, com mais uma dinamarquesa e cinco ingleses.

«Trabalhamos muito em equipa. Em cada equipa, temos os líderes de marketing, design e projeto, e à volta temos os designers, os engenheiros, os que fazem os livrinhos de instruções.»

Passou dois meses com o processo de seleção da Lego na cabeça. Eram mais de cem candidatos para dois lugares. Já tinha ido à Legoland, a Billund, por causa de um projeto enquanto estudante da Escola de Design de Copenhaga. Não esqueceu esse dia. «Houve qualquer coisa ali, um clique.» Mal sabia ela as voltas que o destino daria. Enviou o currículo, duas semanas depois recebeu pelo correio duas caixas de Lego e uma carta com a indicação de inventar uma ideia com as peças em cinco dias. Mãos à obra, imaginação a carburar. «Inventei um tema no espaço, uma nave, fiz uma base espacial, conjuguei os legos com outros materiais, foi um processo muito giro.» Chamaram-na a Billund para apresentar a ideia a um painel de designers da empresa durante uma hora. Seguiu-se mais uma hora de entrevista nos recursos humanos. Mais um tempo de espera e a notícia de que tinha sido escolhida. Nem pestanejou. Fez as malas, partiu de Copenhaga para Billund. Hoje é ela quem seleciona pessoal e valoriza o trabalho em equipa, a criatividade, o perceber que as crianças são o centro de todas as etapas.

O recrutamento mudou desde 1997. «Quando recrutamos novos designers fazemos workshops em Billund. Tentamos simular como é trabalhar em design na Lego.» E como é que é? «Trabalhamos muito em equipa. Em cada equipa, temos os líderes de marketing, design e projeto, e à volta temos os designers, os engenheiros, os que fazem os livrinhos de instruções. Trabalhamos em espaços muito abertos e em equipa. Sempre que há decisões, envolvemos todos.»

Rosário vai de carro para a empresa, trabalha geralmente das oito da manhã às quatro da tarde, com paragem para almoço de vinte minutos na cantina da Lego.

Logo que entrou, passou um ano em formação. «Saímos de uma escola de design, mas quando entramos na Lego temos de aprender como as crianças se desenvolvem. Uma criança com 2, 4 ou 4 anos não consegue, a nível motor, montar o lego da mesma maneira.» É preciso perceber os níveis de crescimento. E os seus dias não são todos iguais. «O meu trabalho é muito focado na estratégia, tenho muitas reuniões, falo muito com os designers.» Só no departamento de design há pessoas de 25 nacionalidades.»

Rosário tem 47 anos e vive a vinte minutos de Billund. Vai de carro para a empresa, trabalha geralmente das oito da manhã às quatro da tarde, com paragem para almoço de vinte minutos na cantina da Lego. «É muito importante ir para casa, estar com a família. Damos muito valor a estarmos juntos ao pequeno-almoço e ao jantar.» O tempo livre é ocupado a fazer yoga, em viagens com a família, no convívio com os amigos.

Todos os dias fala três línguas: inglês no trabalho, português com o filho, dinamarquês com o marido. O filho, de 10 anos, está apaixonado por legos. «Às vezes, em casa, monta coisas engraçadas, mostra-mas e dá-me ideias.» E pede-lhe, imensas vezes, para ir para a empresa onde se trabalha em espaços abertos com a matéria-prima por todo o lado, em exposições, na mesa de reuniões, em gavetas com peças divididas por tamanhos e cores. Os criativos têm sempre legos à mão para explicar uma ideia, testar uma invenção. A filosofia é simples: aprender através do brincar, trabalhar através do brincar. O processo criativo envolve brainstormings, pesquisas, testes com crianças. «Trabalhar na Lego é como ser arquiteta. Fazemos construções, cidades, casas. Todos os meses, temos crianças na Lego, com as quais desenhamos, fazemos histórias, mostramos os nossos protótipos. E elas dão-nos o feedback. Queremos que a criança, no processo de construir com legos, consiga o sucesso e a satisfação. Isso é muito importante para nós, mas dizemos que o único limite é a imaginação.»

Durante as férias de verão, trabalhava em colónias de miúdos de famílias pobres. Habituou-se a perceber as etapas do desenvolvimento, conhecimento que hoje lhe dá imenso jeito para entender a cabeça dos mais novos.

Não há formalismos nesta empresa com 85 anos de vida, fundada em 1932. A hierarquia não é um modelo rígido. «Há um respeito muito grande por cada um. Uma boa ideia pode surgir de qualquer lado, da produção, do designer, do chefe.» E o que mais a entusiasma é ver o brilho nos olhos das crianças quando têm legos nas mãos. «É fantástico como a partir de um brinquedo começam a criar as próprias histórias.»

No sétimo ano, Rosário já sabia que iria para Artes. O 12º ano foi feito na Escola Soares dos Reis, no Porto, porque não havia turmas de Artes no final do secundário em São João da Madeira. Não cedeu à tentação de mudar de rumo. Uma hora de autocarro para ir, outra para voltar a casa, um café todos os dias no Majestic. Durante as férias de verão, para juntar uns trocos, trabalhava em colónias de férias de miúdos de famílias pobres. Habituou-se a lidar com os mais pequenos, a perceber as etapas do desenvolvimento, conhecimentos que hoje lhe dão imenso jeito para entender a cabeça dos mais novos.

Liceu terminado, concorreu para Arquitetura e Design. Tinha boas notas, mas não chegaram para entrar na primeira escolha. O sonho era Arquitetura, acabou por entrar na Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha. No terceiro ano conseguiu uma bolsa de Erasmus para a Escola de Design em Copenhaga. «Nada era impossível nessa altura. Sempre fui muito aventureira, mas não parti com o objetivo de emigrar, antes tirar o curso. Sabia que era uma oportunidade fantástica, senti-me privilegiada por estar numa escola onde era difícil entrar, e decidi aproveitar o máximo dessa experiência. Empenho-me muito naquilo que faço e tento aproveitar o máximo das situações em que me envolvo.»

A determinação não passou despercebida ao diretor da escola dinamarquesa, que a convidou para ficar e tirar o mestrado. Ficou mais dois anos. Levou a teoria de Portugal, juntou-lhe a prática da Dinamarca. «O ensino não é tão curricular, tão académico como em Portugal. Isso foi bom. Aprendi muito, o curso era muito mais prático, tínhamos de saber fazer coisas com as próprias mãos.»

Curso terminado, abriu um estúdio de design em Copenhaga com mais dois colegas, um jugoslavo e uma dinamarquesa-inglesa. No momento em que estavam a decidir se continuariam ou não com as portas abertas, a sócia chegou ao estúdio com um anúncio de jornal: a Lego andava à procura de designers. Candidataram-se os três, só Rosário entrou na empresa em Billund, a duas horas e meia de Copenhaga. Neste momento, não pensa voltar para Portugal. E não foi nada complicado adaptar se à cultura e estilo de vida dinamarqueses. «Encaixam muito bem na minha personalidade e ideologias.»

INSPIRAÇÃO INDUSTRIAL

Nasceu numa rua pequenina de São João da Madeira, perto da fábrica de lápis Viarco, que se tornou o seu pátio de brincadeiras. Os lápis de cor que saíam daquele edifício alimentavam os desenhos que fazia na escola. Em casa, via sapatos nascerem do início ao fim nas mãos do pai, sapateiro. Cresceu no meio de chapéus, sapatos, guarda-chuvas, camisas, colchões, máquinas de costura, torneiras e banheiras, produzidas por indústrias que brilhavam na sua cidade nos anos 1970. «Era interessante ver as coisas nascerem, e isso deve ter tido alguma influência, porque desde cedo quis ir para Artes.»