Dar a face

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reciprocidade

A reciprocidade é um comportamento social muito antigo e fundamental à sobrevivência. Quando caçávamos e não tínhamos maneira de conservar o que sobrava de um animal, partilhávamos. Essa dádiva era o nosso frigorífico ou celeiro ou uma espécie de banco. Ao partilhar, esperávamos que fizessem o mesmo connosco e a comida oferecida, mais tarde ou mais cedo, seria de algum modo devolvida. Num período de escassez seria expectável que o outro nos salvasse da fome. A partilha substituía a acumulação e a propriedade. Não era preciso fechar a comida à chave, pelo contrário, era essencial oferecê-la.

Esta forma de reciprocidade foi gravada na pedra e, em alguns casos, tornou-se lei, como no Islão, por exemplo. Apesar de ser uma lei que incita a que um ato de generosidade seja recompensado, também sublinha que não devemos ser motivados por benefícios ulteriores. Quem oferece não deve pensar na recompensa que poderá via a ter. Mas nem sempre é fácil e esta ideia é frequentemente distorcida. Lembro-me de, em Marraquexe, algumas crianças, e de um modo aparentemente espontâneo, oferecerem-me peças de artesanato. O problema é que estas ofertas não passavam de um negócio camuflado de altruísmo, pois imediatamente me era exigida reciprocidade, sempre em forma de dinheiro. Se desse o que verdadeiramente me apetecesse, recusavam, fazendo as suas exigências.

Há campanhas publicitárias apoiadas nestes princípios: oferece-se um produto, as pessoas sentem-se devedoras e raramente não contribuem ou compram ou participam (os termos podem variar).

Mas o lado mais perverso da reciprocidade é que não funciona somente com o altruísmo, mas também com a vingança, o «olho por olho, dente por dente». Se é verdade que tendemos a retribuir os favores, também temos uma pulsão idêntica no que respeita às sevícias que nos infligem. «A uma vingança segue-se outra e facilmente se chega a uma guerra», escreveu Dobelli, acrescentando que «o que Jesus pregou, ou seja, interromper o círculo vicioso oferecendo ao agressor a outra face é muito difícil porque há mais de cem mil milhões de anos que a reciprocidade pertence ao nosso sólido programa de sobrevivência».

O mais antigo código penal, o de Hammurabi, já incluía o «olho por olho, dente por dente». Não foram, com certeza, os babilónios a inventar isto, mas é uma ideia com muito sucesso. Para o comprovar, basta abrir um jornal ou um livro de História.

[Publicado originalmente na edição de 26 de março de 2017]