Não mostra a cara nem diz o nome, mas pinta o Porto de Hazul

Ele pinta espaços abandonados para os deixar mais bonitos. O estilo é inconfundível, ondulado e cheio de curvas, figuras sem rosto, aves que parecem serpentes, peixes capazes de voar. Já fugiu da polícia e de laranjas atiradas de varandas. Não mostra a cara nem dá o nome. Assina como Hazul e faz parte da memória coletiva da cidade.

O ateliê onde passa os dias fica no centro do Porto. Último andar de um prédio antigo numa das mais movimentadas ruas da Baixa, sem elevador, muitas escadas, varanda generosa. Os sons do trânsito não sossegam. No chão de madeira, uma pintura que há dias levou para colar numa rua de Paris. Pinturas nas paredes, tintas, materiais, livros em estantes. No sofá, dobrada, a roupa que usa para pintar. Calças de ganga, T‑shirt branca, boné.

Hazul – não revela o nome verdadeiro nem mostra a cara – tem as ruas do Porto na cabeça. No telemóvel, uma lista de sítios para pintar. Sai à noite com latas de spray nos bolsos que vai usar nas paredes de edifícios abandonados. É um trabalho clandestino. Tem 35 anos, é autodidata e faz isto desde 1997. Entra no espaço público com desenhos cheios de curvas. Diz que disfarça a falta de jeito na arte da perspetiva com linhas que ondulam e transmitem harmonia. São figuras sem rosto, aves, peixes, barcos, vasos, rosáceas. As suas pinturas estão sobretudo no Porto, serão mais de oitenta, mas também as há em Matosinhos, Estarreja, Alfândega da Fé, Açores, Loures e até Paris.

Começou pelas letras do graffiti, passou para as formas abstratas. «Prefiro pintar coisas que não sejam agressivas, que não tenham conotações negativas. Não consigo pintar uma coisa que me provoque raiva.» Por vezes, pinta no fio da navalha. «É engraçado brincar com esta coisa de pintar de forma ilegal na rua e fazer figuras simpáticas.» Desafio que não tem fim. «Vejo um sítio que gostava de pintar. Se for tranquilo, está‑se lá tranquilo, se não for arranja‑se forma de o fazer, nem que seja às prestações.» Nem que tenha de fugir da polícia ou desviar‑se de laranjas ou vassouras atiradas de varandas, como já aconteceu. «Numa sociedade bombardeada com coisas negativas, o revolucionário, para mim, é transmitir harmonia.» Mesmo que a mensagem não esteja à tona. «Apesar de não transmitir uma coisa direta, uma frase, também não estou propriamente a fazer uma comunicação inacessível. Pinto o que gosto e que vai despertar algo agradável nas pessoas. É esta cadeia que pretendo e é só isso.»

Não gosta de explicar pormenores das suas paredes e não tem paciência quando complicam o que, na sua opinião, é simples. «As pessoas habituaram‑se a que o artista tem obrigatoriamente de dissertar e mergulhar num mar de conceitos. Habituaram‑se a que a arte seja inacessível, a que só os artistas, os teóricos, percebam uma obra porque têm de ler um texto gigante. As coisas são um bocadinho mais simples, o universo da arte urbana é bem mais simples.»

Num dia de 2013, Hazul saiu para tomar café e apanhou a brigada antigraffiti, criada no mandato de Rui Rio. Um grupo de funcionários da Câmara Municipal a apagar uma das suas pinturas. Encostou‑se a uma parede a observar os homens que lhe perguntavam, em jeito de piada, se estava a tirar fotografias para a televisão. Não respondeu e, nesse mesmo dia, colocou uma fotografia no Facebook. A polémica estalou. Limpar ou não limpar? Notícias, reportagens, imprensa nacional e estrangeira. Courrier Internacional, Libération. Hazul não parou de ser contactado para comentar o assunto. Limpar sim, mas com um objetivo. «É normal que as pinturas desapareçam, não ficam acumuladas eternamente. É uma cidade, faz parte, e até é uma forma de eu continuar a pintar. É normal apagar uma pintura para reabilitar um sítio, mas apagar pinturas em sítios abandonados não faz sentido.» Limpar sim, mas com juízo, defende.

«Havia zonas muito sujas e era necessária essa limpeza. Só que limparam tudo, e já havia muitas coisas com as quais as pessoas se identificavam.» A projeção foi tão intensa que deixou os empregos precários que mantinha durante o dia e começou a dedicar‑se às pinturas a tempo inteiro. Abriram‑se portas de galerias do Porto, surgiram exposições individuais, convites para projetos, os seus trabalhos começaram a ter procura. E pintou, a convite da Câmara Municipal do Porto, já com Rui Moreira na presidência, uma das paredes do parque de estacionamento da Trindade.

As perguntas continuam a ecoar. Arte ou vandalismo? Dois extremos estranhos? «As pessoas acham que pintar sem autorização em alguns sítios é vandalismo, qualquer coisa é vandalismo nem que se espete ali a Mona Lisa ou lá vá o pintor mais famoso do mundo fazer qualquer coisa. Quem tem uma postura mais crítica, ou mais construtiva, olha e diz se é ou não uma mais‑valia
para aquele sítio, se fica ou não bem, e as opiniões podem divergir.»

Quem pinta na rua tem uma forma peculiar de olhar a cidade. Percebe se a rua tem ou não moradores, o que há à volta, onde fica a esquadra mais próxima, se há seguranças nas redondezas, qual o melhor atalho para uma fuga. «Quando passeio pela cidade nunca é só um passeio. É passeio e trabalho ao mesmo tempo.»

E há uma coisa que ainda ninguém lhe conseguiu explicar e já leu as leis que tinha de ler. Se a câmara empareda uma porta num prédio abandonado, os tijolos que lá coloca não fazem parte da origem do edifício. Até que ponto o dono do prédio passa a ser dono daqueles tijolos? Pelo sim, pelo não, tenta não ultrapassar os limites dos tijolos. Se antes era necessário o proprietário apresentar queixa, agora é preciso licença camarária para pintar na rua. Caso contrário, uma contraordenação. Hazul tem o cadastro limpo. Sem multas, apenas uma ida à esquadra para identificação que não deu em nada, depois de uma corrida e de a polícia o apanhar ao cimo da Rua 31 de Janeiro.

Não era miúdo de muitos desenhos. Tinha o hábito de escrever o nome nas paredes, tal como os amigos do bairro do Carvalhido, onde cresceu. Não pensava no que queria ser quando fosse grande. E a lógica, martelada à pressão, de ter um emprego que desse sustento asfixiava‑lhe a imaginação. «Era uma coisa muito estúpida porque nunca me dava liberdade para pensar no que gostava. Tinha de pensar sempre numa coisa que desse dinheiro.»

Aos 16 anos, quando começou a sair à noite, já andava com colegas de suave, vestia roupa larga e andava de boné, interessava‑se pela cultura urbana. Foi no Comi, o bar na Cedofeita que entretanto fechou, a dois passos do bairro, que a vontade explodiu em 1997. Há vinte anos, tinha 15. A primeira vez que lá meteu o pé era noite de chip top. Percebeu que não estava sozinho. «Foi a primeira vez que vi uma quantidade de gente parecida com o meu universo.» E todas as quintas‑feiras, noites de hip-hop, lá ele estava batido no Comi.

Palavra puxa palavra, desenho puxa desenho, entrou num grupo de graffiti. Inventou a tag Pong02 – 02 era, na altura, o indicativo telefónico do Porto. E deram‑lhe o nome de PZT. «Inventavam‑se nomes só porque sim.» A vida de bairro deu‑lhe tarimba. «Nos anos 90, a rua era uma extensão da casa. As casas eram tão pequenas que passávamos mais tempo fora do que dentro.» E nos passeios a pé com o avô ia construindo um mapa mental das ruas.

Até 2000, eram só tags. A partir daí, começou a desenvolver o estilo. Durante seis anos, continuou a fazer letras, mais complexas, mais arranjadinhas. Até que parou para pensar. E deixou de fazer letras. «Estava simplesmente a escrever o meu nome e as pessoas não tinham de levar com aquilo. A única forma de continuar a pintar na rua foi achar que poderia transmitir outras coisas que não uma perspetiva tão egoísta.»

Crescia e interessava‑se pelas histórias da humanidade, pela costela mais filosófica da vida. «O que me levou a estudar as conceções que outros povos tiveram sobre o mundo.» Interessou‑se pela cultura egípcia, maia, chinesa. Com a parte gráfica e estética. «Como nunca tive formação artística, identificava‑me bastante com o que via porque era tudo muito simbólico e muito raso. E identificava‑me com aquela falta de jeito para a profundidade e para a perspetiva.» Entrou no universo das formas abstratas. Aumentou o ritmo de produção dentro e fora do ateliê. E não procurou formação na área. «Não tinha tempo para parar esse ritmo, ir aprender, fazer tábua rasa do que sabia e começar do zero. E acho que não tinha paciência.»

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UM NOME, UM MAPA
Fala pelos cotovelos sobre a sua arte, mas é discreto e reservado sobre a sua vida. Há perguntas que contorna, fronteiras que não deixa atravessar, questões que ficam sem resposta. E não quer ver a cara estampada no papel. «Nunca gostei de ser uma pessoa reconhecida, tenho o meu círculo de amigos e isso chega‑me.» Nem cara nem nome. Hazul é o batismo que escolheu. «Tem muitos significados, alguns mais pessoais, além da associação à cor»: tranquilidade, serenidade, harmonia. Em 2015 imprimiu um mapa com 56 pinturas no centro do Porto. Um desdobrável, 500 exemplares, gratuito, disponível em alguns espaços: Cooperativa Árvore, Galeria Da Vinci e pouco mais. Um roteiro para apreciar a sua arte a céu aberto. Hoje tem menos paredes para pintar devido à reabilitação urbana puxada pelo turismo, mas ele lá vai encontrando novos espaços. O trabalho do artista urbano pode ser visto nestes locais da cidade:

  • Passeio das Virtudes
  • Rua da Vitória
  • Rua de Cedofeita
  • Rua da Madeira
  • Rua Miguel Bombarda
  • Rua dos Pelames
  • Rua do Alferes Malheiro
  • Rua Brito Capelo (Matosinhos)
  • Rua Augusto Gomes (Matosinhos)
  • Escadas do Codeçal
  • Rua 31 de Janeiro
  • Largo da Maternidade Júlio Dinis
  • Travessa do Ferraz
  • Rua de Trás
  • Travessa das Taipas
  • Rua de Miragaia
  • Rua S. Pedro de Miragaia
  • Largo dos Loios
  • Rua Trindade Coelho
  • Rua do Breyner
  • Travessa da Laje
  • Rua do Bonjardim
  • Rua dos Canastreiros
  • Rua da Banharia
  • Rua Afonso Martins Alho
  • Rua da Ponte Nova
  • Rua Visconde de Bóbeda
  • Rua Cimo de Vila
  • Campo 24 de Agosto