Quente? Isto não é quente. Quente é o que eles sentiram

Notícias Magazine

Garrafas de água. Quantas temos? Duas? De litro e meio? Melhor levar outra. Sim, mais uma. Nunca se sabe. E fresca. Vão aquecer num instante, mesmo com o ar condicionado. Antes a mais do que a menos. O que levas nos pés? Chinelos? Não queres calçar outra coisa? Mais prático para andar, se for preciso. Para correr. Para fugir. Não trouxeste? Pois, são férias, não viemos preparados. Eu levo estes. São um pouco quentes e está calor, mas prefiro. Se tiver de caminhar. Se acontece alguma coisa. Se for preciso. Se…

Foi há uma semana. O domingo estava quente, a viagem não era longa mas sempre eram três horas. E íamos passar por umas três ou quatro estações de serviço. A A2, que corre para o Sul quando vamos para a praia ou para o Norte quando regressamos a casa, é sítio seguro. Faixas largas. Bermas preparadas. A vegetação está longe. Aqui estamos bem. Aqui estamos seguros. Aqui não vai acontecer nada.

Eu só queria que as miúdas dormissem o caminho todo. Para não termos de parar, para não termos de sair do carro, para não termos de perder tempo. Queria chegar. Depois de uma semana fechada, com aqueles dias de brasa, a nossa casa devia estar mais quente que o forno, noutras circunstâncias eram as estações de serviço mais agradáveis. Era o carro mais seguro. Mais fresco. Mas não naquele dia. Não no domingo depois do sábado em que tanta gente foi queimada viva numa estrada de má memória a que nunca mais vamos chamar EN236-1. Naquele dia eu só queria chegar. Comia quilómetros, olhava para a minha mulher e as minhas filhas, a cadela lá atrás, não se via mas estava também, e só queria chegar. A um sítio onde a família não estivesse vulnerável.

Casa mais quente que o forno? Que disparate. Que coisa parva de escrever. Não posso voltar a usar esta expressão. Não devo. Não agora, pelo menos. Quente não era aquilo. Quente é outra coisa. Quente é o que faz rebentar entranhas. Quente é o que mata. Quente foi aquele mar de chamas que se abateu sobre aquela gente que fugia. No domingo, a caminho de casa, com aqueles números na cabeça – na altura já não eram os 19 anunciados na TSF à meia-noite, mas ainda não eram os 47 que já sabemos hoje –, eu só queria proteger aquelas pessoas. As minhas pessoas. Afastá-las de qualquer perigo.

Durante muito tempo, de cada vez que me preparar para uma viagem, creio que vou ter isto na cabeça. Aquilo. O que foi. O que terá sido. De cada vez que apertar o cinto de segurança a uma das minhas filhas, vou pensar naquilo. De cada vez que fechar uma janela para não entrar calor e manter o fresco, vou pensar naquilo. De cada vez que garantir que tenho água no carro para alguma eventualidade, vou pensar naquilo. Protegê-las. Afastá-las do risco. Mantê-las seguras. Era só o que aquela gente queria. Estar segura. Proteger os seus.

Isto não vai ser sempre assim. Vai acalmar. Vai passar. Vai deixar de estar nas primeiras páginas dos jornais e nas capas das revistas. E eu vou acalmar também. Tanta sorte, se calhar, não terão os meus camaradas, que nos últimos dias andaram por lá. Eles viram os corpos calcinados. Os carros queimados. Os terrenos em cinza. As casas negras. Eles engasgaram-se, choraram, perderam forças, recuperaram-nas, fizerem o seu trabalho. Foram eles que nos deram a saber o que poderá ser o inferno. Eles ouviram os sobreviventes. E os que não sabem como vão viver com aquela dor toda, que arde por fora e por dentro. E eu aqui, numa redação, um sítio moderno, com ar condicionado, confortável, seguro, fresco, senti-me tão pequeno nestes dias, a pedir-lhe a eles, grandes, que estiveram lá, que estão lá, para mandarem as palavras deles. O que viram. O que sentiram. Como sentiram. Se eu penso na minha família ao ler o que eles escreveram e fotografaram, o que pensará quem viu o que fez o monstro?

Não volto a falar em calor dos infernos. Isso é conversa para quem o sentiu e ficou a saber que fogo também pode chover. Isso é para quem ouviu as histórias de quem o viveu.