Os miúdos não desligam da tecnologia. E agora?

Notícias Magazine

Texto Cláudia Pinto | Ilustração Sérgio Condeço/WHO

Que geração é esta que não desliga? «É uma geração muito familiarizada com a tecnologia e com a internet e que ao prescindir de determinadas atividades de lazer e de equipa que implicam estar com pessoas, e de desenvolver competências pessoais, relacionais e sociais, corre o risco de não conseguir desligar e de, ao longo do tempo, ter jovens adultos e adultos que não socializaram, não desenvolveram um projeto de vida, que não estudam nem trabalham, que deixaram a escola, que não conseguem arranjar um projeto de empregabilidade, não conseguindo cortar com o cordão umbilical no sentido da autonomia.

«Temos muitos jovens com mais de 20 anos, neste registo», explica Ivone Patrão, psicóloga clínica, terapeuta familiar e do casal, docente universitária, investigadora no Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (ISPA) e autora do livro Geração Cordão, editado pela Practor e lançado em março último.

Depois de seguir uma linha de investigação nesta área e de receber casos de dependências online nas suas consultas, tanto ao nível público como privado, sentiu necessidade de escrever este livro. Também Rosário Carmona e Costa, psicóloga clínica, sentiu que era altura de compilar algumas informações úteis a pais e educadores.

A autora do i-Agora, lançado pela Esfera dos Livros, em abril, revela que «por mais palestras, conferências, sessões a pais que desse acerca da utilização excessiva e desadequada das novas tecnologias, as perguntas permaneciam as mesmas, o alerta permanecia baixo e a única coisa que estava a aumentar era o número de casos que recebia em clínica direta ou indiretamente relacionados com a utilização excessiva de ecrãs».

As surpresas podem mesmo estar à distância de um clique. Vejam-se as consequências do desafio Baleia Azul. Tito de Morais, fundador do Projeto MiudosSegurosNa.Net considera que «a generalidade dos pais tem fé, isto é, acredita que tudo correrá pelo melhor e que as coisas más só acontecem aos outros, até serem despertados por um evento pessoal que afete os filhos ou alguém conhecido ou, no limite, têm um ataque de pânico quando surgem problemas como o jogo da Baleia Azul».

O principal erro que os adultos cometem, na sua opinião, e relativamente à segurança online de crianças e jovens, «é acharem que é um problema tecnológico, quando na realidade se trata de um problema comportamental. Por outro lado, acham que sendo um problema tecnológico, se resolve com soluções tecnológicas (por exemplo, através do controlo parental), esquecendo que precisam também de adotar outro tipo de abordagens, nomeadamente regulamentares, educacionais e parentais». A propósito disto, Ivone Patrão alerta para o facto de as crianças aprenderem «a desbloquear esta ferramenta em segundos, através de tutoriais disponíveis».

Os pais são modelos virtuais. Os filhos seguem-nos nas redes sociais e sabem o que publicam e a que horas estiveram online.

Por outro lado, na incessante procura de utilização racional das tecnologias, são os próprios pais a cometer alguns erros e a abdicar de ser um exemplo. «Devem lembrar-se de que os filhos têm os olhos postos neles e que a relação que vão desenvolver com os outros, com o meio e com as coisas que os rodeiam é modelada pelo exemplo a que assistem.

Largar os telefones perto dos filhos não só lhes passa um exemplo de utilização equilibrada como confirma a importância e o amor que lhes tem por não permitir que nada concorra na atenção que lhes dedica. É também um bom exercício para trazer os pais para o “aqui e o agora” e desligar de um trabalho que, hoje, deixou de ter hora de saída e vem connosco para casa. Que injustiça para as crianças que estão a crescer», defende Rosário Carmona e Costa.

Os pais são também hoje modelos virtuais, sobretudo para os adolescentes. «É que os jovens também acompanham os pais nas redes sociais e conseguem saber se os mesmos publicaram um post às 23h00, à meia-noite, às duas da manhã… Começam a cobrar e a exigir que também eles podem utilizar as redes sociais naqueles horários porque até já são “crescidos”. Cria-se aqui um conflito», explica Ivone Patrão.


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Permitir a utilização de qualquer ecrã sem um conjunto de regras associado no que diz respeito ao tempo de utilização, ao que precisa de ser cumprido para ser utilizado e ao tipo de comportamentos online que não permitem é outro dos erros. «Deixar que a criança ou jovem utilize o ecrã sem cumprir primeiro as suas obrigações, sejam elas quais forem (desde comer a sopa, nos mais pequenos, ao ter de estudar, nos mais velhos); não se interessar ou não saberem que atividades estão os filhos a realizar online: que sites visitam, que jogos jogam, em que redes sociais possuem conta, etc., são erros frequentemente cometidos pelos pais», diz Rosário Carmona e Costa, autora do i-Agora.

O gosto e o envolvimento num leque mais variado de atividades e interesses devem partir dos pais. A escola também tem um papel fundamental. «Há duas coisas que a escola pode fazer no sentido de prevenir a dependência e que passam por ensinar a gestão do tempo e a resiliência. No entanto, como invariavelmente estas matérias não integram o currículo escolar, se a escola não o fizer, os pais podem e devem colmatar essa lacuna», defende Tito de Morais.

Como contornar a realidade destes nativos digitais? Como equilibrar a necessidade de utilizar as novas tecnologias com todos os benefícios que as mesmas incluem? «Zero ecrãs até aos 2 anos. É o que defende a Academia Americana de Pediatria. Por outro lado, a investigação comprova que nenhuma aprendizagem é tão eficaz e duradoura como as que se obtêm através do modelo humano e da interação», explica Rosário Carmona e Costa.

A mudança radical que tem acontecido nos últimos anos tem sido o acesso em «idades cada vez mais tenras e através de cada vez mais dispositivos móveis. Contrariamente ao computador, que mesmo sendo portátil, geralmente tem um posicionamento fixo em casa, facilitando a utilização conjunta e o acompanhamento, os dispositivos móveis são eminentemente pessoais e acompanham as crianças e jovens para todo o lado, dificultando o acompanhamento parental», salienta Tito de Morais.

Quando é que se começa a perceber que há um uso excessivo do mundo online? Não será difícil perceber alguns sinais. Ivone Patrão exemplifica: «Costumo dar o exemplo da jovem que teve um ataque de pânico a caminho da escola, dentro do carro, com a mãe, porque se esqueceu do telemóvel em casa. É o FOMO (Fear of Missing Out) que, em português, é o medo de perder pitada. Esta jovem não poderia perder o que se passa no Facebook e no WhatsApp, mesmo sabendo que ia estar com os colegas durante o dia.»

Nada de ecrãs até aos 2 anos. A medida, que alguns pais podem considerar radical, é defendida pela academia americana de pediatria.

Um dos fenómenos que muito se tem abordado com a massiva utilização da internet e das redes sociais é o cyberbullying. Tito de Morais é coautor do livro Cyberbulling – um guia para pais e educadores, com Sónia Seixas e Luís Fernandes, publicado em abril de 2016 pela Plátano Editora.

«Para além da primeira parte do livro, que contextualiza o problema, explicando o que é o cyberbullying, como se diferencia do bullying, quais os participantes e papéis desempenhados e quais os sinais de alerta, na segunda parte, pais e educadores podem encontrar abordagens regulamentares, educacionais, parentais e tecnológicas para fazer face ao cyberbullying».

Não é um equilíbrio fácil. «Os estudos que tenho feito com jovens e pais demonstram que a média de primeiro contacto com a tecnologia e o online é, na geração dos pais, de 24 anos. A média entre as crianças, hoje, é de seis anos. Estamos a juntar gerações com níveis de experiência completamente diferentes. É muito difícil para estes pais gerirem algo para o qual nunca foram habituados», salienta Ivone Patrão.

Entre a dúvida de proibir totalmente ou permitir sem restrições há espaço para o erro. «É mais fácil permitir a utilização das novas tecnologias na totalidade, mas é errado. As crianças costumam ter uma zona de brinquedos a que podem aceder quando quiserem, mas os «brinquedos» tecnológicos têm outro tipo de consequências: ao nível do sono, da alimentação e até do controlo dos esfíncteres, nas crianças mais pequenas, que se inibem de ir à casa de banho para continuarem agarradas ao computador ou ao telemóvel», diz.

Mas proibir também não é solução, mesmo no caso de jovens que já se encontram em situação de dependência. «É bom que os pais percebam que oportunidades e riscos andam de mão dada e que têm de começar a promover uma relação saudável dos filhos com as tecnologias desde tenra idade, mas sem usarem as tecnologias como chucha. O problema é que, na generalidade das vezes, os pais despertam para os problemas da utilização saudável das tecnologias quando os filhos estão na adolescência e aí já é tarde», explica Tito de
Morais.

Por outro lado, os jovens de hoje serão os trabalhadores de amanhã. «Não somos apologistas da retirada total. Se o fizéssemos, de que forma é que poderíamos integrar o jovem mais tarde no mercado de trabalho? Não há hoje profissão em que não se recorra à tecnologia. Não posso promover a abstinência a um jovem que vai contactar com computadores no mercado de trabalho», diz Ivone Patrão. «Há que fazer a contextualização da integração da tecnologia, uma necessidade que seja ajustada.»

Se, desde pequenos, os miúdos perceberem as vantagens e desvantagens da tecnologia e interiorizarem as regras de utilização da mesma, é mais fácil encontrar o ponto de equilíbrio.

Livros que ajudam

Geração Cordão
Pistas aos pais e professores em prol do consumo saudável da internet.
Ivone Patrão. Ed. Pactor
14,95 euros

iAGORA?
Libertar os filhos da dependência online: ideias para gerir o tempo.
Rosário Carmona e Costa. Ed. Esfera Livros
14,90 euros

Ciberbullying
Para identificar, prevenir e combater o ciberbullying.
Tito de Morais, Sónia Seixas e Luís Fernandes. Ed. Plátano
13,50 euros