Operários portugueses uniram-se e chegam hoje às salas de cinema

Texto Rui Pedro Tendinha | Fotografias Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Uma fábrica sem patrões. Falência à vista! Se antes os operários construíam elevadores, agora está ali uma imensidão do nada. Um ar de nada que não chega para abalar alguns. De repente, alguém grita: «desistir não é opção».

A classe trabalhadora acaba por ficar à frente da fábrica. Eles tornam­‑se patrões de si mesmos, nem que seja preciso cantar. Sim, em A Fábrica de Nada, realizado por Pedro Pinho e por um coletivo da produtora Terratreme, as personagens cantam e dançam para afugentar a crise.

A Fábrica de Nada tem conquistado festivais de todo o mundo, sobretudo após o brilharete em Cannes: prémio da crítica na Quinzena dos Realizadores.

Este é o ponto de partida para este épico de três horas que tem conquistado festivais de todo o mundo, sobretudo após o brilharete em Cannes: prémio da crítica na Quinzena dos Realizadores e unanimemente considerado um dos melhores em todas as secções. Um estrondo para o cinema português que foi imediatamente vendido para uma série de territórios internacionais.

Mas antes de tudo, esta fábrica era uma ideia de Jorge Silva Melo, o encenador dos Artistas Unidos, que chegou a encená-la como peça de teatro. Chamava-se A Fábrica de Nada (foi levada à cena em 2008) e era baseada, por sua vez, num texto de Judith Herzberg. Em vez de elevadores, era uma fábrica de isqueiros. Silva Melo quis transportar o projeto para o cinema mas tal não aconteceu.

«A relação do filme com a fábrica em si é uma coincidência e um décor. Deixaram-nos filmar lá porque sentiram que esta nossa história estava ligada a eles», conta o realizador Pedro Pinho.

A Terratreme ficou com o projeto e deu-lhe uma outra volta, deu-lhe sinais de realidade e inventou uma história com contornos de real, sobretudo quando descobriram a fábrica que serviu como décor principal, a antiga Fateleva, em Vila Franca de Xira, fechada recentemente um pouco após as filmagens terem terminado. «A relação do filme com a fábrica em si é uma coincidência e um décor. Deixaram-nos filmar lá porque sentiram que esta nossa história estava ligada a eles», conta‑nos Pedro Pinho. Uma fábrica que chegou a ser um exemplo de autogestão dos seus empregados após o 25 de Abril, quando o patronato a abandonou.

O filme tem toque, ou melhor, um abanão de cinema verité que se cruza com efeitos de cinema de ensaio e de ficção realista. A dada altura, A Fábrica de Nada passa da comédia ao melodrama, piscando o olho ao musical a uma velocidade estonteante, misturando atores e muitos não-atores, na maioria trabalhadores fabris.

Pedro Pinho, o realizador de «A Fábrica de Nada». Ao fundo, o cineasta Tiago Hespanha, que faz parte do coletivo que deu vida a este projeto.

Na Terratreme, o cinema é realmente um ato coletivo. Pedro Pinho foi o realizador, mas A Fábrica de Nada é feito, escrito e imaginado por Luísa Homem; Leonor Noivo, Tiago Hespanha e João Matos, cineastas a chegar aos 40 anos.

«Quando começámos o projeto, a ideia foi logo sentarmo‑nos todos juntos e reescrevermos o projeto do Silva Melo. Fomos cena a cena. Imaginámos tudo de novo. Não sei se é complicado trabalhar assim em grupo… Foi assim que nós fizemos. Alugámos uma casa na Póvoa de Santa Iria e mergulhámos naquele universo. Escrevíamos ao mesmo tempo que montávamos um processo de casting que alimentou o processo de escrita», conta Tiago Hespanha. Foi nessa altura que começaram a integrar operários no desemprego e a colocar coisas deles no guião.

A improvisação, baseada nas experiências pessoais, foi o «pão nosso de cada dia» num filme que demorou quase três anos a ficar concluído.

Curiosamente, o filme faz-se de situações que deram aos não-atores, sem diálogos escritos. A improvisação, baseada nas experiências pessoais, foi o «pão nosso de cada dia» num filme que demorou quase três anos a ficar concluído.

Quando nos encontrámos com alguns dos operários transformados em atores, estes estavam ainda nas nuvens com o êxito internacional do filme, em especial Zé Pedro, de 52 anos, que adorou toda esta sua aventura cinematográfica: «Nem sei como fui escolhido. Estava a passar ali na Póvoa, ia ali tomar uns canecos e a menina da produção reparou em mim, perguntou-me se queria fazer um filme, disse-me que bastava ser igual a mim próprio e encontrei sempre coisas para dizer.» Zé Pedro já trabalhou em muita coisa na vida e é um operário que viveu também a sensação de estar desempregado.

«Fazer o filme no local onde trabalhei trouxe-me aquela saudade dos colegas. E lembra-me o fim, em que já não tínhamos trabalho… Foram dias terríveis a ver os colegas a ir embora. Mas o que vemos ali sou eu.», diz Sandra Calhau, uma das operárias feita atriz.

Para Sandra Calhau, que trabalhava na fábrica dos elevadores, o processo foi sobretudo doloroso: «Fazer o filme no local onde trabalhei trouxe-me aquela saudade dos colegas. E lembra-me o fim, em que já não tínhamos trabalho… Foram dias terríveis a ver os colegas a ir embora. Mas o que vemos ali sou eu. Eu diria aquelas coisas naquelas circunstâncias!».

No atual trabalho, neste caso uma fábrica de frangos, é vista hoje como uma vedeta: «As colegas viram-me na televisão, quando se falou do filme em Cannes, e agora chamam-me de “atora”, já viram isto? Isto foi uma experiência de vida incrível. Estávamos todos tristes e desmotivados. Sabe que mais? Este filme vai ser um exemplo para muita gente.»

Vai, e isso é seguro, dar origem a uma reflexão sobre o lugar da classe operária no Portugal dos dias de hoje. A Fábrica de Nada é um tipo de cinema engagé que consegue dar humanismo aos portugueses que não costumam ser personagens de ficção, aos portugueses que não têm personagens de telenovela.

Hermínio Amaro, de 51 anos, também era um operário desempregado e foi um dos poucos que foi a Cannes acompanhar a estreia do filme: «Nunca na vida imaginei que ia subir a um palco num local daqueles. Foi de doidos. Todos a olhar, nem sabia o que fazer. Eu nunca tinha feito nada de representação na minha vida.»

«Nunca na vida imaginei que ia subir a um palco num local daqueles. Foi de doidos. Todos a olhar, nem sabia o que fazer. Eu nunca tinha feito nada de representação na minha vida.», diz Hermínio Amaro.

Tudo o que lhe aconteceu na fábrica de onde foi obrigado a sair, aconteceu-lhe na vida real: ou seja, recusou um acordo e saiu sem nada. Não é por acaso que se chama também Hermínio no filme. É um resistente, mas agora vive de part-times: «Sou um sobrevivente.» E belo ator de cinema, dizemos nós.

Descoberta também é o senhor António Santos, 56 anos, outra personagem que é espelho de si. António, que cresceu a trabalhar em fábricas, foi bombeiro, ficou no desemprego e hoje é taxista, às vezes… Quando filmou, estava com um emprego temporário como jardineiro: «Este filme tocou-me muito. Eles conseguiram realmente retratar a nossa vida no auge da crise. O colapso industrial bateu a todos da nossa geração. Nunca irei esquecer aqueles sete minutos de ovação em pé, em Cannes.»

António Santos, Hermínio Amaro, Fernando Lopes, João Santos Lopes e Sandra Calhau são algumas das estrelas improváveis de «A Fábrica de Nada».

A produção do filme conseguiu que todos estes amadores ganhassem algo que passa para o espetador: um espírito de camaradagem. «Esse é o segredo de A Fábrica de Nada», dizem quase ao mesmo tempo. Sandra Calhau põe os colegas de elenco a repetir acordes da canção do momento musical, um tema de intervenção que é um dos tours-de-force do filme e diz: «Temos vozes de ópera. É uma maravilha a nossa canção.»

O caso mais curioso talvez seja o de Fernando Lopes, também da mesma geração. Trata-se de um funcionário público que estava com licença sem vencimento a animar bibliotecas escolares quando foi escolhido. Hoje é diretor comercial de uma empresa. Quis entrar no filme porque tinha experiência no teatro amador.

Sobre o filme, tem a convicção de que pode abrir um debate nacional sobre o lugar do proletariado nos nossos dias, mas guarda sobretudo na memória a experiência do cinema: «Foi a oportunidade de ver como esta arte é feita por dentro. Encontrei um realizador e uma equipa de produção muito afáveis. Foi uma experiência muito boa, sobretudo porque encontrei nestes atores sem experiência de representação um novo grupo de amigos.»

Para além da história central da fábrica e dos seus operários, o filme segue a dinâmica de um casal, cujo marido é afetado pela crise. Trata-se de perceber como a intimidade de todos é afetada por aquilo que acontece no trabalho.

Para além da história central da fábrica e dos seus operários, o filme segue a dinâmica de um casal, cujo marido é afetado pela crise. Trata-se de perceber como a intimidade de todos é afetada por aquilo que acontece no trabalho. Paralelamente, há um forasteiro, um intelectual de esquerda que vai refletir para a fábrica sobre a autogestão dos trabalhadores. Um forasteiro que propõe criar um filme, neste caso um musical.

Pedro Pinho, o realizador, salienta que os seus não-atores aderiram de imediato àquilo que lhes era pedido: «Eles trabalharam com uma intensa urgência. Fazer este filme foi como que reagir àquilo que lhes estava acontecer.» Por isso, A Fábrica de Nada é um pequeno grande milagre do cinema social. Para ver nos cinemas…

A FÁBRICA VERDADEIRA

A Fateleva era uma das muitas fábricas que fechou no tecido industrial de Xira e a sua história dá que pensar. Em pleno verão quente de 1975, a administração americana que controlava a produção dos elevadores decide sair e os trabalhadores propõem comprar a fábrica por um dólar. Até aos anos 1990 pertenceu-lhes. Depois, a necessidade de empréstimos bancários levou à criação de uma sociedade.

Em 2016, fechou, mas terá inspirado A Fábrica de Nada… A equipa de filmagens diz ter sido a fábrica em auto-gestão que mais tempo durou em Portugal. Pedro Pinho sabe que nos anos de ouro chegou a ter cerca de 300 operários. Em 2015, na altura das filmagens, trabalhavam apenas 12. As encomendas eram poucas… Hoje está trancada.